Realizador: Alejandro González Iñárritu
Actores principais: Leonardo DiCaprio, Tom Hardy, Will Poulter
Duração: 156 min
Crítica: Esta semana, ‘The Revenant’ (O Renascido) estreia nas salas portuguesas com o invejável rótulo de nada menos que 12 nomeações para os Óscares (o mais nomeado), e tendo já vencido uma série de outros prémios, como Melhor Filme, Realizador e Actor Principal nos Globos de Ouro. Aliás, é esta última categoria, Melhor Actor para Leonardo DiCaprio, que tem tomado de assalto a maior parte dos prémios internacionais, com uma regularíssima unanimidade. A crítica americana diz-nos que este é o filme do ano e a interpretação do ano e, só após essa confirmação (como de costume) é que o filme é lançado na Europa para ser inevitável todos nós, cinéfilos ou não cinéfilos, comprarmos o bilhete.
E a verdade é que compramos, todos contentes (nada mais há a fazer!), mas isso não implica que vamos ficar satisfeitos. Conhecendo como conhecendo como funciona o ‘sistema’ e tendo já tido inúmeras desilusões nesta época de Janeiro, pré-Óscares, com inexplicáveis nomeados e controversos vencedores, o cinéfilo mais dedicado entra sempre na sala com um certo grau de suspeição. Contudo, de vez em quando, há surpresas. Realmente, os Óscares não podem errar sempre, e o ano passado tivemos um maravilhoso exemplo disso. ‘Birdman’ era um grande filme e, se talvez não foi o justíssimo vencedor do Óscar de Melhor Realizador / Argumento / Filme para o mexicano Alejandro González Iñárritu (num ano com ‘The Grand Budapest Hotel’, ‘Intersteller’ ou ‘Jersey Boys’), andava lá perto.
Surpreendentemente é o próprio Iñarritu que nos oferece, nem um ano depois, ‘The Revenant’, e está no limiar de fazer história se conseguir ser de novo o grande vencedor dos Óscares. Está Iñarritu no melhor período da sua carreira ou esta atenção a ‘The Revenant’ vem como inevitável consequência do destaque que teve o ano passado? Podemos dizer que não há fumo sem fogo, mas também sabemos o facto inegável que o vencedor anterior tem sempre lugar cativo na cerimónia seguinte, faça que filme faça. A minha opinião é que o que está a acontecer este ano é uma mistura entre estes dois estados. ‘The Revenant’ é um bom filme (até o podemos chamar de ‘grande’ filme se o compararmos com as baboseiras que inundam os Óscares ano após ano – afinal Iñarritu está a ficar cada vez melhor realizador), mas está vários graus abaixo de ‘Birdman’ e é daqueles filmes que começa no pico e depois nunca faz jus a esse início nem ao seu conceito…
Usei a palavra ‘surpreendentemente’ no parágrafo anterior para descrever o regresso tão célere de Iñarritu pois ele é daqueles realizadores ponderados, que até agora deixou sempre pelo menos três anos entre filmes, e os produtos finais reflectiram sempre essa sua forma de fazer cinema exímia e dedicada ao pormenor, orquestrando cada segundo do filme, cada pedaço da tela, com a devoção de um pintor da renascença, intento em contar histórias dramáticas modernas. Na minha crítica a ‘Birdman’ confessei-me pouco devoto do trabalho de Iñarritu. Na altura, só não tinha visto o seu filme de 2011, ‘Biutiful’ (uma falha que entretanto já colmatei), e chamei ao seu trabalho (que inclui ‘Amores Perros’, 2000; ’21 Grams’, 2003; e ‘Babel’, 2006) “pretensiosamente ambicioso, como telenovelas excessivamente bem filmadas ao estilo de um Douglas Sirk da era moderna”. As suas capacidades como realizador nunca questionei, mas até ‘Birdman’ as suas histórias, em mosaico, de coincidências trágicas e filmadas com um misto de intimidade e artificialidade para ‘chocar comodamente’ o espectador, nunca me agarraram. E da, chamemos-lhe, frescura e inocência deste estilo em ‘Amores Perros’, fomos até ao pico do comercialismo em ‘Babel’, onde Iñarritu praticamente vendeu a alma às leis convencionais de Hollywood. Felizmente entretanto já se arrependeu e começou a trilhar de novo o caminho inverso, o que é óptimo.
Creio que com ‘Biutiful’, filmado em Espanha, Iñarritu conseguiu encontrar-se, e ao fazê-lo conseguiu surgir como um realizador muito mais poderoso. A degradação emocional, que tão forte é nos seus filmes, ganhou propósito, conseguiu surgir credivelmente no seio de personagens que anteriormente eram intensas, sim, mas talvez demasiado artificiais. E com ‘Birdman’ (de longe, para mim, o seu melhor filme) Iñarritu ainda levou a coisa mais longe, pois ao abafar todos os elementos exteriores, encontrou no contexto fechado daquele teatro na Broadway, e nas pequenas rotinas e problemas contidos das personagens, uma dimensão universal que, por exemplo, o seu épico mundial ‘Babel’, com todo o seu espalhafato, não conseguia ter. Foi essa súbita mudança subtil no tom de Iñarritu que para mim fez toda a diferença e me fez olhar para ele com outros olhos.
Portanto foi com expectativa que entrei em ‘The Revenant’, rotulado como um filme de sobrevivência e vingança, passado em inóspitas paisagens da fronteira americana por volta do ano 1820. Não é propriamente a época, a paisagem ou o argumento para um grande filme comercial, mas com Leonardo DiCaprio - um actor que fica cada vez melhor com cada filme que passa - à cabeça (num papel exigente que associaríamos a um Daniel Day Lewis), Iñarritu no pico da forma e um grande estúdio por trás (Regency com distribuição pela 20th Century Fox) os dados estavam lançados para termos verdadeiro cinema a surgir das fornadas de Hollywood. E todos sabemos o quão raro isso é. Fazendo jus a essa crença, mal o filme abre, o cinéfilo cedo se apercebe que é precisamente isso que vai obter. Desde o primeiro plano, com a extraordinária fotografia do mais influente director de fotografia da actualidade, Emmanuel Lubezki (ganhou o Óscar nos dois últimos anos por ‘Gravity’ e ‘Birdman’; fará a tripleta?) e a realização íntima e intensa, quase sem cortes (tal como em ‘Birdman’) de Iñarritu, o filme gera um enorme impacto no espectador e prende-o com o virtuosismo da sua técnica.
Estamos nas florestas da fronteira americana, em território perigoso, dominado por índios, onde uma expedição de homens brancos procura caçar animais pelas suas peles. O guia desta expedição é o misterioso Glass (Leonardo DiCaprio), um homem de poucas palavras e com um passado que de vez em quando surge em flashbacks e nunca é 100% explicado, fazendo lembrar de certa forma o homem sem nome dos velhos westerns. Acompanhado do seu filho mestiço, fruto de uma relação com uma índia agora morta, Glass veio para a fronteira para fugir do passado, mas o seu destino é inevitavelmente trágico. Quando o encontramos pela primeira vez, está concentrado a tentar caçar um alce, mas logo nos apercebemos que algo não está bem. E de repente, surge um épico ataque índio ao acampamento branco, todo filmado com a ilusão de um contínuo plano e com um enorme sentido de realismo gore. Aliás, já não via um filme comercial ‘de época’ com tanto realismo estético a filmar batalhas e sangue desde ‘Braveheart’ ou ‘Henry V’ e Iñarritu usa na perfeição a evolução dos efeitos especiais (incrivelmente realistas) para embrenhar o espectador nesta batalha que é tudo menos ‘limpinha’. Com um enorme esforço (que se sente como se fosse a realidade – um dos grandes trunfos deste filme) e com Glass a incentivá-los, os homens feridos conseguem fugir para o seu pequeno barco e fazer-se ao rio.
Acabamos de assistir a uma cena absolutamente extraordinária, uma fantástica abertura para um filme deste género, e que nos catapulta para o tom árduo e inóspito do local e da época, misturado quase paradoxalmente com a inerente beleza natural do território, como provavelmente apenas ‘The Last of the Mohicans’ (1992) de Michael Mann ou ‘The New World’ (2005) de Malick anteriormente haviam feito. Contudo, constatar que esta é a melhor cena do filme é uma grande decepção. A realidade é que, apesar de Lubezki também ser o director de fotografia de excelência de Malick (‘The New World’, ‘Tree of Life’ e ‘To the Wonder’), Iñarritu nunca se lhe poderá comparar em termos da capacidade de extrair profundidade lírica da natureza. O belíssimo pano de fundo do filme (os rios, a floresta e no final a neve) nunca é explorado como fica a sensação de que poderia ter sido. E depois Iñarritu fica demasiado inconstante, misturando o seu velho estilo com o de ‘Birdman’ sem grande critério. Ao longo do filme, a filmagem em plano sem cortes praticamente não mais regressa, inclusive nas cenas de acção. Ao longo do filme, a realização intimista também vai e vem, independentemente do conteúdo das cenas.
Mas o pior é mesmo a incapacidade que o filme tem em se manter enérgico, depois de estimular tanto os sentidos e as emoções do espectador nas suas primeiras cenas. Um filme ser ‘ponderado’, como são os filmes de Tarkovsky, os tardios Kurosawa ou, se quisermos exemplos americanos recentes, ‘No Country For Old Man’ ou ‘There Will be Blood’, é diferente de ser ‘parado’. ‘The Revenant‘ é um filme que conta a sua história com uma sentida ponderação, e muito mais por imagens do que por diálogos (DiCaprio tem tantas frases como Schwarzenegger no primeiro ‘Terminator’), mas pelo menos eu fiquei com a sensação, à medida que o filme avançou, que por mais impactantes que as imagens possam ser à primeira vista, tornam-se cada vez mais incapazes de ter o poder suficiente para contar devidamente esta história. Se até agora o argumento escrito tem sido um dos grandes trunfos das películas de Iñarritu (o caso de ‘Bridman’ é paradigmático) em ‘The Revenant’, especialmente na segunda parte do filme, há uma grande dificuldade em ser cativante ao contar a história apenas com o recurso ao visual. Por mais belo que ele seja, por mais intensas que sejam algumas cenas, tem que haver algo que se transcenda, e nem o argumento, nem a realização e nem sequer a actuação de DiCaprio (o papel é extraordinário, mas sinceramente a sua actuação não suplanta o papel) conseguem fazê-lo. O filme, que começou de uma forma tão extraordinária, começa a ficar, lentamente, desinteressante.
A história do filme vai-se desfiando em várias linhas paralelas. Primeiro, percebemos que os índios não atacam os brancos só porque sim, como nos velhos westerns. A filha do chefe dos índios, Powaqa (Melaw Nakehk'o) foi raptada por uns brancos e a sua tribo anda atrás dela, por vezes quase desesperadamente (matam primeiro, fazem perguntas depois, algo que não faz muito sentido), sendo assim uma constante ameaça às personagens que constituem a linha principal da história. Esta surge no seio dos sobreviventes brancos do primeiro ataque, que pretendem regressar ao entreposto comercial de onde partiram. Procurando fugir da ameaça dos índios, abandonam o barco, enterram as peles e seguem a pé pela floresta sob a liderança do capitão Henry (Domhnall Gleeson) e a ‘navegação’ de Glass. Há uns leves acordes de ‘Aguirre o Aventureiro’ (1972) de Herzog, mas claro, de uma forma muito mais comercial. O desespero, o isolamento e a tensão obviamente fazem despertar a disputa entre os homens, principalmente entre Glass e o paranóico e racista Fitzgerald (Tom Hardy num dos melhores papéis da sua vida, embora, à semelhança do filme, ele próprio a meio se esqueça dos tiques com que começou…). Quando Glass é vítima de um ataque de um urso (mais uma cena marcante, soberbamente realizada e na qual os espectadores mais sensíveis devem desviar o olhar) e fica gravemente ferido, incapacitado assim de continuar a caminhada com os restantes, o seu filho e outro jovem, juntamente com Fitzgerald, são obrigados a ficar para trás para cuidar dele. Mas Fitzgerald aproveita a oportunidade para matar o filho de Glass e deixar este praticamente às portas da morte. Contudo Glass não morre. E vai querer vingança, nem que tenha de percorrer quilómetros e quilómetros, ferido, esfomeado, literalmente a arrastar-se por rios, vales e montanhas geladas, até conseguir estar frente a frente de novo com Fitzgerald, que por esta altura também já conseguiu chegar ao entreposto…
O melhor do filme está sem dúvida no estabelecimento da sua premissa, mas também na ousadia que tem em mostrar a árdua odisseia de Glass, com um excruciante realismo que é muito mais que chocante ou meramente estético; consegue ser realmente arte. Cada etapa que Glass consegue transpor, quer seja apanhar um peixe para comer ou conseguir erguer-se de pé de novo, é sentida com uma imensa intensidade pelo espectador. Contudo, se este pedaço de cinema verité histórico, misturado com épico de sobrevivência, é sem dúvida cativante e será talvez algo nunca visto pelo espectador de blockbusters moderno, peca por ter pouco que o ajude a reinventar-se à medida que o tempo vai passando. O filme basicamente anda em círculos, não acrescentando nada ao arco emocional das personagens desde as primeiras cenas (a relação Glass-Fitzgerald é imutável), mas mesmo assim insistindo em oferecer cena após cena com uma, a partir de certo ponto, enervante ponderação, enquanto, pouco focado e desequilibradamente, continua a seguir o trilho das quatro odisseias convergentes (a de Glass, a dos índios, a de Fritzgerald e a do resto do grupo).
E, quando finalmente tudo converge para um ponto, o clímax é paradoxalmente frouxo, tendo em conta a construção excessivamente trabalhada durante quase 2h15min e o enquadramento ser mais que propício. O filme termina sem realmente saber que terminou e o espectador fica com a mesma dúvida. Parece haver um regresso ao pretensiosismo emocional do início da carreira de Iñarritu, que ‘Birdman’ descartava como parte da sua própria sátira ao sistema. Aqui, repete-se um pouco a forma solta e algo atabalhoada como os Irmãos Coen haviam terminado ‘No Country for Old Man’, mas mesmo aí, pelo menos, havia um sentimento que perdurava. Nada disso acontece em ‘The Revenant’. Sob a usual bandeira de ‘baseado numa história verídica’, o filme divide-se entre a narração dos factos ‘crus e nus’ e a estética artística, e daqui retira um pedaço de cinema excitante pelos factos e si, a intensidade com que são reproduzidos em câmara e a indescritível beleza das composições. Mas se tem um invólucro imaculado, parece faltar o conteúdo, que sacie quer as personagens, quer o espectador. Agora, ao pensar nisto nestes termos, hesito se terá sido propositado. Há um vazio emocional no filme (e talvez por isso é que quer o clímax, quer a moral, não são muito convincentes), e há uma impessoalidade paradoxal na forma como a história é narrada (e daí o filme perder ritmo e interesse a meio) – paradoxal pois a história que conta é incrivelmente pessoal. Será esta a grande alegoria filosófica de Iñarritu, a grande mensagem que a sua peça transmite, ou está ele simplesmente a tentar ser, como muitas vezes na sua carreira, demasiado pretensioso para o seu próprio (indiscutível) talento?!
O ano passado elogiei como Iñarritu conseguiu ser, inesperadamente, tão focado em ‘Birdman’, negando “o comercialismo excessivamente dramático que tem caracterizado as suas obras”, ficando livre assim para criar uma “poderosa tour de force de actuação e de organização cénica”, onde se sentia “o sabor desse ar fresco, dessa irreverência, que apesar de truncada pelas convenções, realmente existe”. ‘The Revenant’ é igualmente uma tour de force de actuação (porque esta é genuína), de fotografia (belíssima), de design de produção de época (excelente), e é fresco no sentido de que é um filme ousado para Hollywood, com a sua intensidade realista, a sua ponderação argumental e sua incessante busca por veracidade. Mas apesar de tudo, não o consegui considerar irreverente, porque, se me permitem a redundância, não achei esta busca por veracidade muito verdadeira, e não senti (pois é uma questão de sentimento, espectador a espectador) que o filme tivesse conseguido ser emocionalmente profundo, como pretendia ser.
No final, creio que o público em geral sairá da sala completamente siderado. É este o pedaço de Cinema (com “C” maiúsculo) que não existe na vida usual do espectador ocasional, quer ao longo do ano, quer até na época dos Óscares. Mas o cinéfilo que conhece muito, que já viu muito, apreciará este esforço certamente, mas ao mesmo tempo recordar-se-á de uma altura em que o cinema de Hollywood era o mais bem filmado, o mais bem realizado, e com essa constatação virá uma certa sensação de nostalgia e de decepção com a forma como o filme escolhe desaguar. Malick faria uma obra prima com este material. Mas Iñarritu não está à altura. Não me parece que haja dúvidas de que o filme tem grandes hipóteses de arrebatar os Óscares de fotografia, efeitos visuais e de outras categorias técnicas, e que Leonardo DiCaprio irá ganhar a sua há muito merecida estatueta, mas sinceramente não consideraria este como o Melhor Filme nem Iñarritu como o Melhor Realizador. Spielberg, por exemplo, dá-nos uma lição de cinema cada vez que faz um filme e ‘Bridge of Spies’ não é excepção. Iñarritu chama demasiado a atenção para si próprio e algures a meio, inexplicavelmente, apesar da intensidade do argumento e do poder das personagens, ele perde-as pelo caminho. E isso, para mim, foi imperdoável e impede-me de considerar este filme, que tanto fascínio intrínseco possui, a obra-prima que esperava que fosse. Veremos o que acontecerá nos Óscares…
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