Realizador: Charles Chaplin
Actores principais: Charles Chaplin, Edna Purviance, Jackie Coogan
Duração: 50 min
Crítica: (Esta é a sétima crítica de um ciclo sobre as 10 curtas-metragens que Charles Chaplin realizou durante o seu período com a distribuidora First National (1918-1923). Pode ler a introdução a este ciclo na minha crónica “Chaplin na First National (1918-1923) - Introdução para um ciclo de críticas” (link aqui), bem como ter acesso aos links para as restantes críticas à medida que forem publicadas.)
‘The Kid’ (‘O Garoto de Charlot’) é a grande obra-mestra de Chaplin para a First National. E, com quase uma hora, é realmente o seu primeiro filme, o filme que estabeleceria a sua viragem definitiva, não só em termos da personalidade e da mística do seu Vagabundo, mas também como artista. Em ‘The Kid’, Chaplin esquece a comédia pela comédia. Usa-a claro (nunca a abandonaria) mas envolve-a de lirismo e sentimento (mais aqui do que em qualquer ponto anterior da sua carreira), mas também de pungência trágica e de crítica social, tons que marcariam todas as suas longas-metragens. Em ‘The Kid’ estas duas vertentes cruzam-se na perfeição numa história que é um conto de fadas moderno, mas com um sabor amargo por ser fortemente reminiscente da infância triste e pobre do homem que encarnou o Vagabundo. É, apercebemo-nos desde o início, um trabalho sentido, feito com o coração, e constitui sem dúvida alguma a obra mais pessoal de toda a sua carreira.
Ao ver ‘The Kid’ temos que nos recordar que não é um filme, antes uma curta-metragem expandida, para compreender a sua estrutura em quadros curtos e simples. A diferença é que, ao contrário de curtas anteriores (‘Sunnyside’, ‘A Day’s Pleasure’) onde os quadros valiam por si, mas não se interligavam com grande convicção, em ‘The Kid’ a narrativa que a sequência destes quadros gera é incrivelmente eficaz (melhor que qualquer sua obra pré-filmes), entrosando-se na perfeição para contar o arco das suas personagens; a pobre mãe que num momento de fraqueza abandona o seu bebé (Edna) e o Vagabundo, que o encontra e cria como seu.
Claro, não fosse este um filme mudo, há aqui algum exagerado melodramatismo, principalmente no que concerne a história da mãe que, quase inexplicavelmente e muito convenientemente, reaparece anos mais tarde, rica e famosa, à procura da criança que sempre se arrependeu de ter abandonado; ou na sequência sonhada, um three-penny ballet, que Chaplin se dá ao luxo de introduzir quase no final. Mas isto são inevitáveis consequências do estilo do cinema mudo, mas também da nova vertente do cinema de Chaplin, que neste filme desabrocha em pleno; a existência de uma realidade trágica e lírica, mas onde há sempre, sempre (Chaplin nesta altura ainda se recusava a admitir outra hipótese) a bonança, ou pelo menos a esperança dela, depois da tempestade.
Por isso mesmo, o Vagabundo de ‘The Kid’ é o definitivo, o mesmo de ‘City Lights’ (1931), o mesmo de ‘Modern Times’ (1936), o Vagabundo incompreendido, o Vagabundo perdido na sociedade e no Mundo moderno, o Vagabundo que pode continuar a ser ambíguo, mas já não o é por motivos interesseiros. Por exemplo, a sua profissão em ‘The Kid’ é reparador de janelas, mas janelas que ele, ou o miúdo, quebram anteriormente (e engraçadamente!). Mas essa é a única maldade que faz, e fá-lo para conseguir sobreviver, fá-lo para poder alimentar o seu filho e dar-lhe tudo do pouco que tem. São precisamente as primeiras sequências no frugal apartamento do Vagabundo, quando ele cuida da criança primeiro em bebé e depois 5 anos mais tarde, onde o cerne da história se passa, com o pouco que tem e sempre cheio de recursos, que mais nos aquecem o coração e mais nos ligam emocionalmente às personagens e ao filme. E claro, ajuda bastante, imenso, a enorme química que se gera entre o Vagabundo, e o seu pequeno filho adoptivo, um autêntico mini-Chaplin, numa deliciosa, genial e comovente interpretação do Jackie Coogan (o melhor child-star de sempre?!). Sente-se amor verdadeiro entre ambos, que extravasa a tela; amor esse que se prolongou por toda a vida de Chaplin. É famosa a história que durante as filmagens Chaplin e Coogan se tornaram inseparáveis (o filho que nesta altura ainda não tinha) e a história que, apesar de não se terem tornado a ver por largas décadas, quando Chaplin foi “perdoado” e homenageado na América no início da década de 1970, reconheceu imediatamente Coogan numa cerimónia (na altura este era famoso por fazer de Uncle Fester na série de televisão da Família Adams) e, extremamente comovido, disse à mulher de Coogan: “You must never forget. Your husband is a genius”. E é.
‘The Kid’ nunca é tão engraçado como outras curtas de Chaplin deste período, nem era suposto. Pessoal como nunca havia sido, artístico como nunca havia sido, Chaplin atinge uma maturidade em ‘The Kid’, um domínio da arte cinematográfica, que nunca iria abandonar. A história é simples, sem dúvida, mas a beleza está geralmente nas coisas mais simples. E aquilo que comove também. É por isso que, acima de tudo, para mim a genialidade de Chaplin, e de ‘The Kid’, está na forma inteligente como a história é contada. Chaplin aborta um tema bem real e bem perto do seu coração com uma extraordinária pungência e uma forte consciência crítica (veja-se a impactante cena em que os ‘vilões’ do orfanato tentam levar à força o miúdo – até corações de pedra se derreterão a ver), mas ao mesmo tempo, conscientemente, impede que seja esse sentimento crítico (quiçá polémico na altura) a dominar o filme. Chaplin inunda-nos de sentimento, de comédia e de fortes personagens, tudo ao mesmo tempo, e faz um arco perfeito da tragédia à esperança. O final feliz é a inevitável consequência da ‘máquina de sonhos’ de Hollywood, mas também da própria mensagem que Chaplin procura transmitir. Uma história de esperança com um final feliz, desde que sincera (e é isso o que falta no gigantesco mar de filmes ‘baseados em histórias reais’ que hoje inundam o cinema) é muito mais poderosa que qualquer crítica.
Em ‘The Kid’, Chaplin atravessa os portais da genialidade e torna-se artista, extraindo cinema e comédia directamente do seu coração, para nos comover ainda com esta pequena fantasia, com esta ínfima alegoria do seu mundo contemporâneo, quase 100 anos depois. É suposto chorarmos e rirmos ao mesmo tempo e no fim acreditarmos num mundo melhor. Com ‘The Kid’, como em quase nenhum outro filme de que há memória, realmente fazemo-lo.
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