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Bridge of Spies

Ano: 2015

Realizador: Steven Spielberg

Actores principais: Tom Hanks, Mark Rylance, Alan Alda

Duração: 141 min

Crítica: Spielberg está de volta! Outrora esta frase gerava uma enorme antecipação a nível mundial. Ninguém, na história do cinema americano, uniu tão perfeitamente o apelo comercial, o fascínio do entretenimento, e a arte de bem realizar, como este simpático produtor/realizador americano. Amamos Spielberg pela sua sinceridade a realizar, pelos seus valores (morais, familiares), mas também pelo extraordinário olho que sempre demonstrou, na composição cénica, na direcção de actores (e muitos descobriu ele), na gestão das nossas emoções. Do ataque inesperado do camião em ‘Dual’ (1971), ao ataque subtil do tubarão em ‘Jaws’ (1975), ao épico ataque às praias normandas em ‘Saving Private Ryan’ (1998), Spielberg sempre soube, como ninguém, aquilo que extasia uma audiência. E pelo meio, deu-nos imortais aventuras, os Indiana Jones (1981, 1984, 1989, 2008) ou os Jurasic Parks (1993, 1997); imortais histórias ternurentas para a família (‘E.T.’, 1982; ‘Hook’, 1991; ‘The Terminal’, 2004), e ainda encontrou o seu lugar entre os críticos mais cépticos com ‘importantes’ peças de arte (embora para mim os anteriormente citados também o são!) como ‘Schindler’s List’ (1993), ‘Empire of the Sun’ (1987) ou ‘Lincoln’ (2012).

O nome de Spielberg estará para sempre associado ao melhor cinema da segunda metade do século XX e é uma bênção que ainda tenhamos, hoje em dia, oportunidade de assistir a um novo filme seu, como ainda assistimos (felizmente) ao novo Eastwood ou ao novo Malick. Contudo, todos envelhecemos e por qualquer motivo Spielberg já não causa tanta excitação e tanto mediatismo como anteriormente. Talvez seja porque a teoria do realizador/autor esteja a cair em desuso na promoção actual dos blockbusters americanos (alguém fala sobre quem são os realizadores por detrás dos filmes de super-heróis da Marvel, por exemplo?). Ou talvez seja porque a magia familiar e de certa forma despreocupada que associávamos aos blockbusters dos anos 1980 e 1990, e do qual Spielberg era o expoente máximo, já não existe no cinema supostamente mais ‘negro’ e mais ‘realista’ (supostamente repito) que caracteriza os blockbusters de agora. É só ver a diferença entre o novo ‘Jurassic World’ e o ‘Jurassic Park’ de Spielberg de 1993. Spielberg fez parte de uma era com um estilo que, apesar de recordarmos com nostalgia e um sorriso, agora já não parece interessar ao público, sedento de um Iron Man 4 ou de um Transformers 5.

E talvez por todos estes motivos, e com os seus anos avançados (completa 70 anos em 2016), Spielberg se tenha acomodado na realização de filmes mais sérios e mais dramáticos, que exibem a sua arte, obviamente, e até podem ganhar mais prémios, mas já não parecem ter tanta paixão, pois Spielberg sempre se interessou mais em transmitir valores através do entretenimento, não através de exercícios condescendentes e pedantes como aqueles que hoje desaguam todos os anos na época dos Óscares. Com a excepção do algo desapontante ‘Indiana Jones 4’ de 2008, e do fantástico ‘The Adventures of Tintin’ (2011), um throwback ao seu velho estilo aventureiro, todos os filmes que Spielberg realizou na última década foram dramas de época, ‘baseados em histórias verídicas’ e lançados pela altura dos Óscares: ‘Munich’ (2005), ‘War Horse’ (2011) e ‘Lincoln’ (2012). Claro que isto não é necessariamente mau, nem implica que Spielberg esteja a perder o seu talento. Aliás, dos velhos mestres americanos dos anos 1970, Lucas, Coppola, Scorsese; Spielberg é aquele que mais, pelo menos para mim, superou o teste do tempo. Mas mesmo assim, sentimos falta do velho Spielberg. Se por um lado filmes como ‘Tintim’ são uma grande ajuda para nos recordarmos dele, por outro filmes como ‘War Horse’ (para mim o pior Spielberg de sempre, a par de ‘1941’, já criticado) são um duro recordar de como o seu estilo pode ser deturpado e tornar-se moroso se pincelado pelos valores artificiais e preguiçosos que caracterizam o actual cinema ‘das massas’. Mas, felizmente, um grande mestre consegue sempre regressar com algo melhor. E Spielberg é um grande mestre.

Com ‘Lincoln’ (2012) Spielberg deu-nos mais do que um grande filme, deu-nos uma obra-prima. Daniel Day-Lewis pode ter ganho o Óscar de Melhor Actor, e a derrota de Melhor Filme (para ‘Argo’) até pode ser aceitável, mas a derrota de Spielberg como Melhor Realizador (para Ang Lee com ‘The Life of Pi’) foi no meu ponto de vista um autêntico escândalo. ‘Life of Pi’ tem imagens inevitavelmente belíssimas, mas isso é consequência do seu argumento, não da realização. ‘Lincoln’ não pode ter as mesmas imagens, pois passa-se em Washington no século XIX, mas é uma verdadeira lição de cinema, a todos os níveis. Mas subtileza e mestria na realização já não valem atenção mediática, nem prémios, nos dias de hoje. É o mesmo motivo pelo qual Clint Eastwood em 2008 foi nomeado pelo espalhafatoso ‘Changeling’ e não pelo exímio ‘Gran Torino’, e o ano passado foi nomeado por ‘American Sniper’ e não pelo extasiante ‘Jersey Boys’. Do mesmo modo, digam o que disserem, dêem ou não prémios, o mesmo Spielberg de ‘Schindler’s List’ e ‘Saving Private Ryan’ ainda está vivo em ‘Lincoln’ e, felizmente, também está vivo na sua nova obra, ‘Bridge of Spies’ (A Ponte dos Espiões).

‘Bridge of Spies’ oferece-nos um Spielberg na sua melhor forma dramática / filme de época. Não é o Spielberg de ‘Jurassic Park’ ou ‘Indiana Jones’ claro, mas é o Spielberg de todos os seus melhores dramas. Aqui, e prosseguindo o seu relevante trabalho em ‘Lincoln’, Spielberg constrói, com a ponderação da época onde o seu filme se enquadra, a Guerra Fria (não confundir isto com morosidade, como DeNiro fez em ‘The Good Shepherd’, 2006), mais uma grande lição cinematográfica, de gestão cénica e de orientação de actores. Como de costume, Spielberg impregna a obra com a sua clássica veia all-american, que no seu caso não se caracteriza por uma defesa cega da América e dos americanos (felizmente!), mas antes pela defesa dos seus valores; os valores da liberdade, da honestidade, e da lealdade para com a família (os valores que são os do próprio cinema de Spielberg) e uma pitada, necessária (mas muitas vezes ausente) de ambiguidade. Em ‘Bridge of Spies’, tirando a personagem de Tom Hanks (James Donovan), não há propriamente bons nem maus, quer do lado dos americanos, quer do lado dos russos, e isso é à partida uma mais-valia.

O filme começa por nos enquadrar no contexto da Guerra Fria e prossegue com o contemporâneo hábito enervante de colocar em letras garrafais que a história é baseada em factos reais. Mas cedo acalma o espectador mais nervoso com uma muito bem escrita cena inicial que nos apresenta primeiro Rudolf Abel (genial performance de Mark Rylance), um velho espião russo escondido na América, e depois Donovan (Tom Hanks, que já não trabalhava com Spielberg há mais de uma década), um dos mais famosos advogados de seguros americano. Pudera, as palavras foram co-escritas pelos irmãos Coen (os argumentistas a par de Matt Charman), que não se importam de ir introduzindo umas características piadas naturais no argumento, que dão credibilidade às personagens. Aliás, naturalidade é a palavra chave do filme, impedindo-o de se tornar mais um drama artificial para enaltecer o espírito americano. Mesmo nas partes mais, digamos, heróicas, sentimos a realidade destas personagens (Donovan constipa-se, tem fome, tem sono), e portanto ficamos muito mais envolvidos no seu drama.

Claro que a realização subtil e ponderada de Spielberg ajuda, bem como os actores, que têm o devido espaço para contarem, com o poder das suas interpretações, a história. Hanks está como há muito não o víamos, usando o seu timing cómico para dar familiaridade à sua personagem, e exacerbando a sua conhecida veia de Jimmy Stewart/Henry Fonda da nossa geração para fazer aquilo que mais ninguém parece ter coragem para fazer, pelo bem da nação e da humanidade. Mas até Stewart tinha alguma ambiguidade (principalmente nos seus papéis dos anos 1950) que aqui falta a Hanks. Se há falha no retrato de alguma personagem neste filme, é que Donovan pode ter carências humanas, mas é excessivamente low profile no seu heroísmo (tanto ao ponto de soar artificial), enquanto ao mesmo tempo nunca hesita na sua missão e parece sempre, sempre, sempre encontrar as palavras certas para dizer. Já Rylance como o espião russo está absolutamente soberbo, e seria o justíssimo vencedor de todos os prémios de actor secundário (qual Stallone qual quê!).

A fama de Donovan como advogado leva a que seja escolhido pelo governo para representar o espião russo quando este é apanhado. O julgamento será apenas fachada (a condenação parece inevitável), mas o governo quer transmitir a mensagem ao mundo de que o espião Abel será bem tratado e bem julgado. Algo relutante Donovan aceita. Contudo, aquilo que parece apenas rotina que vem acompanhada de um inesperado mediatismo, transforma-se numa missão de vida e de direitos humanos para Donovan. Apenas ele parece ver para além da superfície do ‘espião russo’, parece ver o homem que merece ser julgado como tal, independentemente do que tenha feito. Ao mesmo tempo, nas suas conversas na cela (soberbas em termos de argumento e actuação), cria-se uma espécie de relação de amizade entre ambos. Mas isto vem com um preço, ao ficar catalogado na imprensa e no público como o ‘defensor do russo’, começa a ser alvo de contestação e alguma perseguição pelo CIA. Donovan vai ficar dividido entre os seus valores, a sua profissão, a sua família e a sua segurança.

Contudo isto não irá durar muito. Paralelamente, e algo previsivelmente, o filme vai-nos mostrando os processos de recrutamento e de treino de um conjunto de jovens pilotos americanos, centrando-se em Francis Gary Powers (o actor Austin Stowell), bem como um jovem estudante americano de economia em Berlin, Frederic Pryor (o actor Will Rogers). Apresentando-os assim do nada, não restam dúvidas do que irá acontecer. Inevitavelmente, o piloto americano é abatido numa missão de espionagem em espaço aéreo russo e inevitavelmente o estudante é preso aquando da construção do muro de Berlin. Estão lançadas as bases para o verdadeiro objectivo do filme. Os russos querem trocar Powers por Abel. Os alemães querem trocar Pryor por Abel. A primeira troca interessa ao governo americano, antes que o soldado capturado revele segredos militares. A segunda, de um mero estudante, não. Mas reconhecem que só há um homem com o talento para fazer essas negociações, Donovan, que é enviado para Berlin. É aqui que o filme fica muito mais interessante. Transladando-se para a Berlin do final da década de 1950, Donovan vai entrar num jogo do gato e do rato com os representantes russos e alemães, fazendo tudo para conseguir trocar um espião russo por dois cidadãos americanos, troca essa que ocorrerá numa ponte que ficou conhecida na história como ‘A Ponte dos Espiões’…

Um facto que poderá não apelar ao público moderno é que isto é um drama da Guerra Fria e não um filme, como entendemos, ‘de espionagem’. Ou seja, embora haja cenas de tensão (e já sabemos como Spielberg é muito bom a filmá-las), não há cenas ditas de acção. A tensão das negociações é obtida através de exímios diálogos e pequenas nuances corporais, um olhar sustido, um ligeiro tremor de hesitação, que nos trazem à memória as grandes obras primas do cinema da Guerra Fria dos anos 1970. Assim sendo, uma grande vantagem é que o filme não precisa de ter uma edição dinâmica para ter ritmo; este é obtido com inteligência através do choque dos egos entre os actores (Donovan vs representante do KGB, por exemplo) e da expectativa associada ao desenrolar do novelo. Aliás, esta forma de filmar reflecte o estilo de espionagem da Guerra Fria e funciona muito melhor do que a usual paranóia artificial, vagueza excessiva ou lentidão propositada que se encontram em muitos filmes do género (o recente ‘Tinker Taylor Soldier Spy’, 2011, por exemplo), e que o próprio Spielberg adoptou em ‘Munich’. Este estilo de ‘Bridge of Spies’ é muito mais interessante, pois tem um propósito perceptível e conseguimos desfrutar dele, cena a cena, nas micro-batalhas que se lutam em gabinete.

Pois no final de contas, este é um filme de personagens e de convicções. O jogo está decidido, as regras também, mas só alguns sabem porque o jogam, e só esses é que conseguem malear as regras para conseguir fazer o bem a partir do caos. Donovan é uma dessas pessoas. Embora seja um herói tão natural e tão sereno na sua vulgaridade que não parece real, acaba por representar a universalidade das convicções que o filme quer transmitir. E por haver essa universalidade é que o filme não se preocupa em acusar governos ou regimes, ou em mostrar, por exemplo, se o soldado americano revelou ou não segredos aquando do seu cativeiro. Como diz Donovan no final do filme, não interessa o que os outros podem pensar ou dizer. Cada um de nós sabe aquilo que fez, e se nos orgulharmos disso, é suficiente. E é suficiente também para o filme.

Não há aqui uma lição de história, não há aqui uma metáfora de crítica social contemporânea, não há aqui alvos, o que para muitos poderá ser desapontante. A justiça americana é criticada pela forma como gere o caso Abel, ou pelo facto de querer deixar Pryor à sua sorte, é certo, mas depois também é vista como muito mais humana quando comparada com as técnicas de tortura russa que o filme vai mostrando. Curiosamente, já o espião russo parece ser um homem muito mais integro que o americano, que nunca é retratado de forma tão simpática pela câmara. Mas tudo isto são pormenores numa história que transcende esses meros factos (ou especulações), num filme que nunca está tão interessado neles como está nas personagens. As reflexões simples destas são o que constituem o cerne emocional do filme, e têm a vantagem de ser transmitidas por imagens, não por diálogos ocos. O paralelismo da cena em que Donovan vê umas pessoas a tentar saltar o muro de Berlin quando passa no U-Bahn com a cena, no final do filme, em que no metro na América vê umas crianças a saltar uma vedação num movimento semelhante, diz muito mais sobre o estado das coisas do que se tivesse feito um enorme discurso “para as câmaras”. E nós, como espectadores, agradecemos.

É inevitável que no final do filme, ao lermos o clássico texto de “o que é que aconteceu na vida real às personagens depois dos eventos do filme”, sintamos um pouco a exagerada artificialidade que caracteriza as biografias modernas, em termos de ‘endeusamento’ da sua personagem central. Mas pensando no que está para trás, é um sentimento que logo descartamos. O ano passado, ao ver baboseiras como ‘The Imitation Game’ o espectador mais céptico torceu o nariz pela constante insistência do filme em nos querer provar que Turing ganhou a Guerra sozinho e que sem ele éramos todos nazis. Em ‘Bridge of Spies’ a grande vantagem é que o filme não almeja essa visão condescendente. Com Hanks ao seu melhor nível, Donovan é um cidadão comum, apenas a fazer o seu trabalho. A História pode reconhecê-lo como um herói, e o filme também, mas a personagem nunca se vê como tal (o que lhe pode ter custado a nomeação para Óscar de Melhor Actor...). Só quer chegar ao fim do dia com a consciência tranquila, e o filme faz o mesmo, ciente de que contou uma boa história, ciente de que fez jus a um homem desconhecido do grande público com a subtileza necessária (e tão ausente ano após ano nestas biografias de época) para a tornar credível e, admitamos, inspiradora.

Com ‘A Bridge of Spies’ Spielberg junta mais um bom e sólido filme ao seu cânone. Não é uma obra prima como ‘Schindler’s List’, nem tão soberbamente realizado como ‘Lincoln’, mas não deixa de ser cativante, pontilhado de um inteligente argumento, extremamente bem gerido, boas interpretações (ainda Alan Alda como o chefe de Hanks e Sebastian Kosch como um advogado alemão), uma fotografia adequada (apesar de ser algo inconstante no look; começa lavado 70s mas depois vai perdendo isso pelo caminho), e uma banda sonora vintage Thomas Newman, que consegue, com a humilde confiança que caracteriza todo o filme, substituir o grande John Williams, indisponível devido a doença (é o primeiro filme de Spielberg sem ele em 40 anos!).

Podemos achar esta história mais ou menos interessante (poder-lhe-á faltar o coice da forçada tensão dramática que caracteriza o cinema moderno). Podemos achar a personagem de Hanks mais ou menos forçada no seio desta história inspiracional que, felizmente, não se comporta como tal. Mas uma coisa é certa; Spielberg é ainda um dos melhores realizadores que anda por Hollywood. É uma pena que o público e muitos críticos se pareçam ter esquecido disso. Ver ‘Bridge of Spies’ é recordar isso, a cada frame.

1 comentários:

  1. bom analista cinematografico, mas outro bom comentario seria q cineastas aumentassem a 'fonte/talho' das letrinhas ao final contando o que aconteceu com os personagens geralmente de fatos reais, logo importantes ou mais que o proprio momento do filme.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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