Realizador: Steve Martino
Actores principais (voz): Noah Schnapp, Bill Melendez, Hadley Belle Miller
Duração: 88 min
Crítica: Após 15 anos de intensa produção de animação computadorizada por parte dos estúdios americanos (Pixar, Disney, Dreamworks, Sony, Blue-Sky, Illumination) finalmente alguém teve a coragem para enfrentar uma das mais bem-amadas tiras de banda desenhada de que há memória: ‘Peanuts’, e teve a ousadia de a tentar introduzir para as novas gerações de espectadores.
Coragem e ousadia porque Peanuts, concebida por Charles M. Schulz em 1950, é uma autêntica instituição. Schulz desenhou a sua tira durante cinquenta anos (retirou-se por razões de saúde em 2000 e faleceria no ano a seguir) e as personagens de Charlie Brown, Snoopy, Lucy, Linus e companhia fazem parte do nosso imaginário e da nossa cultura. Qualquer abordagem cinematográfica seria um pau de dois bicos. Primeiro porque à partida já é aposta vencedora, pois para todos aqueles familiarizados com a BD, este universo já nos seduziu há muito e, se re-inventado com reverência e a alma do material original, a batalha já estaria meia ganha para conquistar novos públicos. Mas precisamente essa magia da tira constituirá o maior perigo de qualquer adaptação. Durante os anos 1960 e 1970, pela mão do próprio Schulz, foram feitos quatro filmes de ‘Peanuts’, e desde então na televisão americana (e em VHS e DVDs por aí fora) já foram lançados inúmeros especiais com estas deliciosas personagens, que vincaram o seu tom e as suas personalidades. Um desvio, uma perda da essência de ‘Penauts’, da sua “honestidade emocional” (como Bill Watson a descreveu) poria em risco a aceitação crítica e sentimental do filme. E neste mundo moderno, todos sabemos que esse é um risco comum de acontecer.
A companhia que teve tal coragem e tal ousadia de retomar o tema de ‘Penauts’ no grande ecrã passados 35 anos, e fazê-lo pela primeira vez em animação por computador, foi o Blue-Sky Studios (cujos filmes são distribuídos pela 20th Century Fox). ‘Snoopy and Charlie Brown: The Peanuts Movie’, estreado em Portugal no dia de Natal, celebra o 10º filme da companhia, que durante um breve momento no tempo, nos seus primórdios no início da década de 2000, foi o mais popular dos pequenos estúdios de animação. O primeiro filme da companhia, ‘Ice Age’ (2002) foi um estrondoso sucesso e o pequeno Scrat tornou-se o seu símbolo e o seu mais reconhecido item, colocando o estúdio taco a taco com os gigantes Pixar (que lançava ‘Monsters Inc.’) e a Dreamworks (que lançava ‘Shrek’) – uma posição que diria eu hoje é ocupado pelo ‘pequeno’ Illumination. Mas tal como o Ilumination está hoje Minion-dependente (‘Despicable Me 3’ a caminho em 2016), o Blue Sky nunca rompeu as suas amarras a ‘Ice Age’ para encontrar novos rumos. As sequelas de Ice Age surgiram com uma cíclica regularidade (2006, 2009, 2012, praticamente filme sim, filme não do estúdio) e os filmes de permeio não passaram grandemente para a posteridade (‘Robots’, 2005; ‘Horton Hears a Who’, 2008, ‘Epic’, 2013), a não ser talvez o engraçado ‘Rio’ (2011), que teve direito a uma sequela (que não vi) em 2014. E, nem de propósito, hoje sabemos que ‘Ice Age 5’ se avizinha no Verão de 2016 e a curta que antecede ‘The Peanuts Movie’ é com o pequeno Scrat (como quase todas as do estúdio).
Neste enquadramento, a escolha de Peanuts é uma manobra ousada de um estúdio carente de imaginação e até ambição artística. Aliás, após uma década de produção cómica (os filmes de ‘Ice Age’ já praticamente se transformaram em auto-paródias), ‘The Peanuts Movie’ poderá ser sem dúvida o filme mais importante do estúdio, e não é com surpresa que com facilidade poderá ser considerado um dos melhores filmes que o estúdio já produziu, talvez até o melhor desde o primordial ‘Ice Age’ de 2002. Isto porque realmente o filme é, pelo menos em parte, bem-sucedido em recuperar a magia destas personagens e destaca-se por mais um pormenor extremamente importante: não faz grandes esforços em modernizá-las (a não ser o hábito enervante de encher a banda sonora de músicas ‘modernas’). O filme é suficientemente humilde para perceber que o material de base é tão rico e intemporal que qualquer tentativa de o re-inventar para a geração pós 2000 seria uma autêntica patetice. Aliás, o filme é co-escrito por dois descendentes de Charles Schulz, o seu filho Craig e o seu neto (filho de Craig), Bryan, que obviamente, e bem, cuidam do material com amor e reverência. Mas isto não quer dizer imediatamente que o filme é uma obra-prima. Se a alma de Peanuts é mantida (e é isso que mais nos faz sorrir e aquece o coração no final), o filme tem alguma dificuldade em se materializar e suster em formato de longa-metragem (lembremo-nos da síntese das tiras) e esse é o seu maior senão.
Realizado por Steve Martino, realizador de ‘Horton Hears a Who!’ (2008) e de ‘Ice Age 4’ (2012), a primeira sensação que o filme nos dá é quase perfeita. Quando critiquei ‘Astérix: Le domaine des dieux’ (2014) elogiei que a animação por computador era tão boa que a meio nos esquecíamos que estávamos a ver um filme produzido com esta tecnologia. Em ‘The Peanuts Movie’ acontece o mesmo. Já nos trailers tínhamos visto que a animação era extremamente estilizada, recuperando os traços simples das tiras. E ao longo de todo o filme (praticamente excepcionando as fantasias de Snoopy) essa estética mantém-se, traduzindo-se em movimentos simples das personagens, uma palete de cores apelativa e cenários directos, sem detalhes exagerados nem excessivamente preenchidos, como há a tendência para fazer hoje em dia com a facilidade que a tecnologia proporciona. Isso contrasta (mais uma vez bem) com a atenção ao pormenor do desenho, que faz a ponte com a BD. Quando Woodstock voa, vemos os pequenos traços que descrevem o seu movimento. Quando Charlie Brown veste um gorro, as suas sobrancelhas continuam a ver-se (e a mover-se), por cima deste. Quando Pig Pen surge, a clássica nuvem de sujidade que o acompanha parece desenhada “à mão”. Os sonhos de Charlie, representados por um balão à la BD que sai da sua cabeça, são a p/b e a 2D, com a estética das tiras de Schulz. E aí por diante, enchendo a história de familiaridade.
Contudo, se esteticamente o filme é praticamente imaculado, em termos de história há fortes desequilíbrios. O filme mantém a tradição das tiras situando-se no mundo (real e imaginário) das crianças (mais Snoopy) e não nos mostra um único adulto. Quando surgem é sempre fora de câmara e não falam, antes expressam-se pelo som estilo ‘trombone’ que recordamos de clássicos desenhos animados. Nesse mundo, o filme começa num dia em que não há escola por causa da neve e entramos de rajada no universo Peanuts (entrar com a câmara no lago gelado onde todos brincam é como entrar na nossa infância) com todas as personagens a darem um pequeno ar da sua graça até que o filme se foca, sem mais largar, em Charlie Brown. Aliás, as restantes personagens, até ao final do filme, têm papéis apenas para estimular qualquer coisa em Charlie, e se as trocassem, ou seja, se fosse Sally em vez de Patty a dizer uma qualquer frase, temos a sensação que não faria grande diferença. Isto pode ser um turn off para quem tem preferidos. No meu caso, por exemplo, lamentei o pouco tempo de antena dado a Linus, mas ri-me sempre em todas as aparições de Pig Pen.
Se rapidamente passamos por todos os standards de Charlie Brown, a sua inépcia a lançar papagaios ou no basebol, ou a sua insegurança (na banca de psicologia de Lucy por exemplo), com pequenas punchlines, o filme rapidamente descobre que não se consegue suster só assim, e aí começa a vacilar. Procura dar um propósito a Charlie Brown, uma espécie de objectivo que possa suster a história do filme, e encontra-a na clássica ‘Little Red Haired Girl’, a paixão secreta de Charlie Brown que nas tiras é sempre um elemento referido, mas nunca mostrado. Aqui, ela surge como a nova vizinha de Charlie e a nova aluna do liceu, e o filme vai mantendo a sua mística, nunca mostrando a sua cara por inteiro até quase ao final do filme. O objectivo de todo o filme, até ao final do ano e as próximas férias do Verão, é Charlie tentar impressionar a pequena miúda ruiva e fazer com que ela o note.
Mas o filme não consegue optar por um único rumo e nunca fica satisfeito com cada uma das tentativas de Charlie para a impressionar. Cada uma dessas tentativas (o espectáculo de talentos da escola, o trabalho de grupo e o desfazer de um mal entendido quando se assume que Charlie fez um teste de 100% e portanto é um génio) poderia dar material para um filme por si própria. Em vez disso, o filme salta de uma para outra com uma constante necessidade (que não era necessária) de mais movimento e mais história. A moral e a estrutura simples que ostenta como maior qualidade e maior elo de ligação ao espectador é tido pelos próprios criadores do filme como insuficiente para suster a atenção da criança ou pré-adolescente moderno. E assumir isso, na minha opinião, é dar o ouro ao bandido. Por isso, o filme ainda tem mais uma desfeita. Vai intercalando a aventura de Charlie Brown com as fantasias de Snoopy, nomeadamente as suas como piloto ás da Primeira Guerra Mundial contra o famoso Barão Vermelho. E se no início isto ainda era engraçado, embora um pouco desapontante porque estragam a mística (encontra a sua máquina de escrever no lixo em vez de surgir ‘por magia’ como nas tiras; o avião do Barão Vermelho é um avião de brincar real…), a meio do filme ganha tanta importância que passamos mais tempo a ver as fantasias de Snoopy que a própria história de Charlie. Teria lógica se se interligassem. Mas isso não acontece.
Contudo, apesar de se gladiar entre estes dois estados; a aventura fantasiosa ‘de acção’ do maravilhoso Snoopy (e não nos enganemos, é maravilhoso neste filme, como sempre – adoro quando dança de cabeça para cima) para dar mais dinamismo ao filme; e a mais lírica e mais humana história de Charlie Brown, o eterno inadaptado; no final é esta que ‘ganha’, digamos assim, e é aí que o filme, se já não o tinha feito até então, nos capta o coração. Por mais ‘distracções’ que o filme se dê a si próprio, por mais tentativas de piada fácil (Snoopy a dançar Gipsy Kings por exemplo) no final tudo é redimido. Deixemos de lado o espalhafato. Deixemos de lado tudo aquilo que a nossa cultura contemporânea nos tenta dizer que apela às crianças. Todos sabemos que isso não é inteiramente verdade. Há valores que se mantêm inalterados, por mais que as tecnologias evoluam, e por mais anos que cresçamos (todos nós que deixamos de ser crianças há muito). Finais como aquele que o Blue Sky cria em ‘The Peanuts Movie’ são muito mais do que nostálgicos recordares desses valores, porque nostálgico implica saudosismo, uma coisa que é distante. Mas estes valores não estão distantes, ainda existem, estão vivos, e podem passar de geração em geração, desde que nos esforcemos por isso. Muitos poucos filmes para crianças hoje em dia se dão ao trabalho de ter esse esforço. Existe nos melhores filmes da Disney. Existia nos primórdios da Pixar. E existe em ‘The Peanuts Movie’, e esse é o melhor elogio que se lhe pode dar.
Digo honestamente que ‘The Peanuts Movie’ não é certamente o melhor filme que poderia ter sido feito do imaginário de Peanuts. Portanto, o mais purista fã das tiras poderá sair um pouco desapontado. Mas será só, creio eu, um pouco. Não será o melhor filme de Peanuts, mas o filme que a Blue Sky produziu é, se assim se pode dizer, suficiente. É inevitável que se modernize um pouco o material. É inevitável que se tente espevitar o filme com alguma ‘cor’ e alguma ‘acção’. Mas o Blue Sky não retirou uma pinga da alma do universo de Schulz. ‘The Peanuts Movie’ é um filme para crianças, mas também um filme para os adultos que nunca deixaram de ser crianças. A sua história aproxima-se mais de um comming of age para pré-adolescentes, um filme da descoberta do primeiro amor, um filme da descoberta do lugar na ‘sociedade’ quando se é desastrado, trapalhão, inseguro e inadaptado (no fundo, quando se é um Charlie Brown), mas ao mesmo tempo é também um filme de alegria e diversão e cheio daquele calor maravilhoso que é ‘ser criança’. Pode não ter algum do sarcasmo ou da crítica social das tiras de Schulz, mas tem tudo o resto, com naturalidade, com simplicidade, com alegria, que não precisa de ser artificialmente exuberante, só precisa de ser sincera, como a alegria das crianças.
‘The Peanuts Movie’ é o pedaço de cinema mais artístico e mais relevante que alguma vez saiu dos fornos do Blue Sky, e é aquele que mais iremos recordar, independentemente de quantos ‘Ice Age’ se fizerem. E é-o precisamente porque não foi feito para tentar ganhar milhões de dólares, não foi feito para a piada fácil, não foi feito para o consumismo desenfreado. Foi feito de coração para coração, com as personagens que amamos e que estão no geral bem reproduzidas, e que podem não revelar novas facetas (provavelmente nem quereríamos isso), mas revelam as suas facetas familiares de tal forma que nos confortam, nos inspiram e nos fazem sorrir, num mundo que é idílico sim, mas não é, se me faço intender, cor-de-rosa. E assim desfrutamos, aprendemos, e crescemos. Tal como quando lemos as tiras. Terá sequela? Não sei. Mas não precisa. Está tudo aqui.
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