Realizador: Guy Ritchie
Actores principais: Henry Cavill, Armie Hammer, Alicia Vikander
Duração: 116 min
Crítica: A coisa que mais me indigna nas re-adaptações de filmes ou séries clássicas é a completa e total alteração da psicologia das personagens e/ou do espírito do material original. No primeiro filme da ‘Missão: Impossível’ (1996), o herói de 143 episódios televisivos, Jim Phelps, é convenientemente transformado num vilão para que o Ethan Hunt de Tom Cruise (uma personagem inventada) possa brilhar. O Simon Templar de Val Kilmer do filme ‘The Saint’ (1997) não tem absolutamente nada a ver com o Simon quer dos livros de Leslie Charteris, quer da série dos anos 1960 tal como interpretado por Roger Moore. O Maxwell Smart de Steve Carrell do filme ‘Get Smart’ (2008) também é pouco parecido com o original. E assim sucessivamente.
Sinceramente, qual é a dificuldade de fazer um filme de espionagem novo e inventar espiões novos? Até porque, na realidade, já estão a fazê-lo. A única coisa que não inventaram foi o nome do filme e o nome da personagem principal. De resto surge tudo como uma novidade (não necessariamente fresca) e se o espião fosse original isso não resultaria num filme diferente. Portanto há assim tantas vantagens em manter essa ligação superficial à série de origem? Há assim tantos fãs dessas séries agora? Quantos jovens, que hoje permitem aos estúdios ter enormes sucessos de bilheteira, viram a série original de ‘The Saint’ ou ‘The Man from U.N.C.L.E.’? Poucos certamente. E por mais que estes filmes novos possam ser um fiasco (‘The Saint’, ‘The Avengers’) insiste-se nessa mania de tomar uma atitude convencida e condescendente em relação ao material de base. Parece um paradoxo. Por um lado os estúdios são preguiçosos e não querem estar a pensar em novos conceitos. Por outro, acham que a série original não é boa o suficiente e tentam afastar-se dela o mais possível, modernizando ao máximo o material. Mas modernidade não significa imediatamente qualidade. E mesmo que os filmes até sejam interessantes (´Get Smart’, por exemplo, era uma boa comédia), para os fãs fica sempre um sabor amargo. Não me importaria de ver um filme igualzinho a este, mas porque raio é que têm de lhe dar o nome de uma série que não tem absolutamente nada a ver?
Estas mesmas questões invadiram-me por todos os lados quando no último domingo fui ao cinema ver a nova adaptação de Guy Ritchie da série ‘The Man from U.N.C.L.E.’. É um filme de espionagem como há muito não se fazia, com uma contenção vagarosa e um charme intrínseco reminiscente dos primórdios do spy-fi dos anos 1960 (embora minado pelo pavoroso estilo de realização de Ritchie, que abomino), mas tem pouco ou nada do sabor de ‘The Man from U.N.C.L.E.’. Tão pouco que até o próprio nome ‘The Man from U.N.C.L.E.’ não faz sentido (embora ninguém se pareça aperceber disso). ‘Two Men and a Girl from U.N.C.L.E’ seria mais lógico.
Na minha crítica a ‘The Spy with My Face’ (1965), um dos filmes da série original, tracei o historial da série ‘The Man from U.N.C.L.E.’, que durou 105 episódios ao longo de quatro temporadas entre 1964 e 1968. Inicialmente concebida pelo próprio Ian Fleming (o autor de James Bond), a série retratava as aventuras do agente Napoleon Solo, interpretado com um carisma algo plácido e adormecido por Robert Vaughn, e do seu parceiro russo Illya Kuryakin (David McCallum). Ambos trabalhavam para a United Network Command for Law and Enforcement (U.N.C.L.E.), sob a direcção do enigmático Mr. Waverly (Leo G. Carroll), e tinham como arqui-inimigos a terrível agência do mal THRUSH, que, obviamente, é feita à imagem da famosa SMERSH de James Bond.
Verdade que ‘The Man from U.N.C.L.E.’ não era a mais espectacular série de espiões de sempre. Era um produto de matiné familiar, com um ritmo contido de acção vagarosa e intensidade moderada (mas que para a época seria, supõe-se, suficientemente intensa), e com um tom leve e despreocupado. Mas tinha algo muito importante que nos dias de hoje, quando tudo o resto é datado, ainda subsiste; carradas de charme e carradas de carisma. Cheguei a temer que Guy Ritchie (o homem que realmente nunca chegou a fazer jus à sua reputação depois do grande ‘Snatch.’, 2000) fizesse ao universo de U.N.C.L.E aquilo que fez ao de Sherlock Holmes por duas vezes (2009, 2011), e que o filme repetisse as mais recentes ‘homenagens’ aos filmes de espiões dos anos 1960, com muito brilho, muitas gadgets, muitos efeitos especiais e muitos one-liners, mas com muito pouca substância. Felizmente, não é bem assim.
Este novo ‘The Man from U.N.C.L.E’ é, como não podia deixar de ser, uma história de origens. É a clássica prequela que nos introduz as personagens (e portanto pode adulterá-las a seu bel-prazer) e permite abrir caminho para as sequelas que a Warner Brothers esperava poder fazer, mas que provavelmente, tendo em conta os valores da bilheteira, nunca fará. Após um genérico inicial “à antiga” que recorda o contexto da Guerra Fria ao som da desinspirada banda sonora de Daniel Pemberton, que parece saída de um spaghetti western (o tema da série de Jerry Golsmith é apenas ouvido num rádio durante 3 segundos), o filme leva-nos para Berlin no início dos anos 1960. Eis que entra em cena Solo (Henry Cavill, o novo Super-Homem), irresistível espião americano. Cavill tenta imitar Robert Vaughn, mas esquece-se que o estilo pachorrento deste era inato; tem-no em qualquer filme, de ‘The Magnificent Seven’ (1960) a ‘Bullit’ (1968). Em Cavill fica apenas artificialmente morno, e só resulta realmente em algumas cenas (a da refeição na carrinha por exemplo; hilariante).
Solo atravessa para o outro lado da cortina de ferro com o intuito de resgatar Gaby; a sueca Alicia Vikander, que este ano vive a sua, merecida, explosão internacional (entrou em ‘Ex-Machina’ e entrará em ‘The Danish Girl’). Para além de jeitosa e atrevida, Gaby é uma dotada mecânica automóvel e também, mais importante, filha de um proeminente cientista nuclear, agora desaparecido (plot original… ou não). A fuga de Solo e Gaby de Berlin Oriental, um clássico do cinema de espionagem da guerra fria, é a primeira grande sequência de acção do filme, que estabelece o seu tom leve e atrevido, mas nunca em demasia. No seu encalço está o agente do KGB Kuryakin (Armie Hammer, o Lone Ranger e o único que encarna realmente a personagem original) que inicialmente perde a batalha com Solo. Mas no dia seguinte, ambos são informados pelos seus superiores, com uma ironia que não passa despercebida, que o caso é demasiado sério e que Rússia e os EUA têm de juntar esforços, o que significa que terão de trabalhar juntos. Isto é o início de uma química entre os dois, caracterizada por um misto de rivalidade cómica e uma semi-seriedade exacerbada pelo sentido de dever e a situação geopolítica, que se repercute por todo o filme. É de notar contudo que em caso de dúvida, o lado leve e humorístico da rivalidade ganha, e é esse o tom que o filme pretende manter.
Numa linha argumental pouco original, descobre-se que o pai de Gaby foi raptado por ex-nazis que pretendem usá-lo para construir uma bomba atómica. É então que Solo, Kuryakin e Gaby se transladam para as belas paisagens italianas em plena era da dolce vita. Aí, rodeados pelo glamour da cidade, procurarão infiltrar-se no círculo social da magnata Victoria (Elizabeth Debicki, a melhor actriz do filme), a fabulosa e sexy vilã que é o cérebro maléfico por detrás do plano e que comanda uma série de ex-nazis escondidos pelo manto da alta sociedade. É lá também que se deparam pela primeira vez com o misterioso Mr. Waverly (Hugh Grant num casting bizarro), cuja personagem só será surpresa para quem não viu a série. O que se segue são voltas e reviravoltas em que os nossos heróis perseguem e são perseguidos, raptam e são raptados, seduzem e deixam-se seduzir para extrair informações, fazem assaltos a armazéns vigiados ao coberto da noite para descortinar mais um bocadinho da plot e têm muitos diálogos com duplos sentidos com os vilões. E claro, há traições e jogos duplos, e nem todos são o que parecem.
Resumindo, bons e maus jogam um constante jogo do gato e do rato que neste filme, surpreendentemente, está mais assente no dialogo, no lento desenrolar do novelo e na batalha de egos do que propriamente nas cenas de acção. É o estilo dos velhos filmes de espiões, o que é de louvar. E, como cereja no topo do bolo, o filme ainda nos oferece um clímax em várias camadas, começando no lar do vilão (neste caso uma fabulosa ilha paradisíaca na costa Italiana onde a bomba atómica está escondida), mas prosseguindo com mais uma bem conseguida perseguição de veículos motorizados e uma corrida contra o tempo para desactivar a bomba e salvar o dia. Aqui bate certo com a série o facto de, tudo somado, Solo nunca fazer grande coisa para salvar o dia. Mas mesmo quando o dia é salvo, o filme ainda dá uns coices, pois retoma a velha rivalidade entre Solo e Kuryakin, sujeitos ao mando das suas respectivas agências secretas…
Na verdade, acho que há mais coisas que apreciei do que aquelas que não apreciei em ‘The Man From U.N.C.L.E.’. Guy Ritchie é um realizador que sempre gostou mais da forma do que da substância, e o modo como decidiu gerir o filme reflecte essa sua predilecção perfeitamente. À superfície tudo é feito para enfatizar a experiência visual do espectador. A vantagem é que isso não quer dizer que o filme está cheio de tiros, explosões ou efeitos especiais. Aliás, Ritchie, ao contrário do que é habitual, está extremamente contido, e o ritmo e acção do filme assemelha-se mais aos primordiais filmes de James Bond do que àquilo que tem sido feito nos últimos vinte anos. O filme desenrola-se com um enorme charme romântico, imbuído de um fabuloso design de produção, guarda-roupa invocando o glamour da dolce vita, e filmagem em localizações belíssimas com muito poucos, ou pelo menos subtis, efeitos especiais. Tudo traz à memória a magia dos velhos spy-fis; a acção familiar, o sexo insinuado mas nunca mostrado (nem sequer vemos um beijinho!), e até o próprio humor do filme nega os clássicos gozões one-liners e substitui-os por humor de situação. ‘The Man from U.N.C.L.E.’ não é uma viagem kitsch ao passado, usando humor do presente. É uma viagem ao universo do género cinematográfico dos espiões dos anos 1960, e isso é um dos seus maiores trunfos.
Mas mesmo assim parece ter havido uma enorme luta interior em Ritchie, e medo de que o tom do filme não fosse bem aceite pelo público moderno. Portanto Ritchie desequilibra o filme. A fotografia de tom ‘moderno’ de John Mathieson está extremamente desadequada em relação à memória da rica palete de cores Technicolor que estes filmes do início dos anos 1960 tinham, e não há quem aguente o estilo de montagem frenético de Ritchie. Percebe-se muito pouco das cenas de acção (apesar de realistas e interessantes), com os constantes cortes e as imagens aceleradas, e depois há a mania de usar e abusar do estilo split-screen. Em ‘The Thomas Crown Affair’ (1968) onde Ritchie parece ter ido buscar esta técnica, o split-screen é usado com moderação, e não distrai do fluir da cena. Em ‘The Man from U.N.C.L.E.’ é um ataque visual aos sentidos, com música berrante ao barulho (trocadilho intencional), que não se adequa ao ritmo tranquilo mas inteligente que o filme tinha estabelecido. A longa sucessão de flashbacks e flash-forwards é também extremamente desnecessária, um artifício para, acham eles, tentar manter a atenção do público. Mas vou ficar realmente mais atento quando me mostram um flashback de algo que aconteceu há trinta segundos?
Mas o pior do filme está naquilo que reside por detrás da fachada, por detrás do brilhante visual. O filme tem conteúdo? Não muito. É um triunfo do glamour visual, não propriamente da psicologia das personagens. Há uma escolha quase inexplicável de dar histórias de base quer a Solo quer a Kuryakin que não existem na série. Solo é apresentado como um ex-ladrão profissional que foi apanhado pelo CIA e portanto teve de escolher entre ir para a prisão ou tornar-se agente e usar os seus inúmeros recursos em prol do governo americano. Kuryakin é apresentado como um homem cujo pai está num goulag na Sibéria, que sofre de distúrbios de personalidade e cuja motivação para ser agente é bastante dúbia e enraizada num complexo de Édipo. Ora nenhuma destes backgrounds inventados para supostamente lhes dar maior dimensão irá fazer grande mossa, até porque, quando a aventura se começa a desenrolar, são praticamente esquecidos e só regressam quando dá jeito ao filme, nomeadamente para recordar o espectador que quando a missão acabar eles voltarão a ser rivais. Mas sinceramente, essa é uma tensão que nunca sentimos. Outra estratégia para dar profundidade e tensão é a exagerada intensidade de algumas cenas (veja-se a tortura a que Solo é sujeito), que destoa completamente com o tom do resto do filme. Tanto que a forma divertida como Solo, com a ajuda de Kuryakin, se desembaraça dessa situação gera um gigantesco fosso emocional. Fomos do pico dramático a mais um momento de humor em dois segundos. Humm…
Na realidade, o único conteúdo emocional que achei realista foi o relacionamento entre Gaby e Kuryakin, mas acho que isso se explica pela qualidade/química dos dois actores. Já agora, Gaby é suposto ser uma espécie de ‘The Girl from U.N.C.L.E.’. Mas o que Ritchie (também argumentista) parece esquecer-se é que houve realmente uma série com esse nome, que durou uma temporada em 1966. Mas o nome da agente heroína não era Gaby. Era April Dancer. Mais uma vez adultera-se inexplicavelmente o material de base. Usa-se o nome de Solo e de Kuryakin. Porque não se usa então o nome de Dancer?! Porquê inventar uma menina nova?
Há umas semanas escrevi que ‘Mission Impossible: Rogue Nation’ era um filme de acção dos anos 1990 em pleno 2015. ‘The Man from U.N.C.L.E.’ é um spy-fi dos anos 1960 em pleno século XXI e isso, sinceramente, é dizer muito. Mas se em termos de tom e glamour este filme está absolutamente na muche, já para contrariar a inata morosidade do género (isto é, para os padrões do espectador actual) Ritchie impregna o filme de uma descabida banda sonora que muitas vezes abafa os diálogos, do seu estilo de realização espalhafatoso e de backgrounds supostamente negros para as suas personagens, numa tentativa de emular o padrão dos actuais heróis de acção. Mas nenhum destes três artifícios faz grande sentido, ou calha bem, no tom e no estilo do conceito de base desta película. E esse desequilíbrio nota-se. Tanto que creio que é essa a razão para o já anunciado fiasco de bilheteira deste filme. Estas cedências, estas ‘modernizações’, fazem com que o filme fique a meio termo. Nem apela ao público moderno porque tem poucos elementos de espectacularidade explosiva, mas também desfaz continuamente a inteligente construção charmosa que apela ao fã do clássico spy-fi.
Na minha crítica a ‘The Spy with My Face’ apelava para que este novo filme de ‘The Man from U.N.C.L.E.’ fosse um reavivamento condigno da série, com respeito, qualidade, um cunho de modernidade, mas acima de tudo, com a essência que remonta aos primeiros spy-fis. Este filme quase consegue satisfazer todos esses pontos, por isso não o posso chamar, ao contrário de muitos críticos, um fiasco. É um entretenimento bastante interessante que dispõe bem sem esforço nem grande profundidade (tal como a série) e invoca a aura de uma época perdida. Isto é óptimo. Mas (e há sempre o ‘mas’ nestes filmes) a forma como escolhe modernizar o material é inconstante e incorrecta, não fosse o seu realizador Guy Ritchie. Primeiro estes agentes da U.N.C.L.E. não são os mesmos da série. Mais valia terem-lhes mudado o nome, como Tom Cruise fez com o seu Ethan Hunt. E segundo, é um filme que por mais que entretenha (e entretém), por mais que seduza visualmente (seduz), fica perdido, a meio-caminho de todos os seus públicos-alvo. E por isso morre na praia, o que é uma enorme pena.
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