Realizador: John Ford
Actores principais: Victor McLaglen, Boris Karloff, Wallace Ford
Duração: 66 min
Crítica: John Ford. Duas palavras que definem o cinema americano no seu mais puro e mais heróico. Vencedor de quatro Óscares de Melhor Realizador entre 1935 e 1952 (uma marca ainda hoje inalcançável), John Ford foi um pioneiro, extremamente influente na criação do estilo visual da Hollywood clássica; um prolífero e dedicado profissional, que podia oscilar entre o bon vivant e o tirânico, mas que nunca punha em causa a qualidade e a integridade do resultado final. Orson Wells descreveu os seus filmes como poesia e disse que os seus três realizadores preferidos eram “John Ford, John Ford e John Ford”. Um epíteto talvez exagerado, mas Ford é o responsável pela definição das convenções do Western clássico e foi exímio a imortalizar a lenda do sonho americano.
Com John Wayne como, digamos, a sua ‘musa’, John Ford realizou westerns seminais como ‘Stagecoach’ (1939), ‘The Searchers’ (1956), ‘The Man Who Shot Liberty Valance’ (1962) ou a famosa trilogia da Cavalaria. Mas não só do western vive a América e não só do western vivia Ford. Com filmes como ‘The Informer’ (1935), o magnífico ‘Young Mr. Lincoln’ (1939), ‘The Grapes of Wrath’ (1940) ou o vencedor de Óscar de Melhor Filme ‘How Green Was My Valley’ (1941), Ford destra e delicadamente pintou o retrato da condição humana, tendo a ousadia de explorar os temas sem tomar juízos de valor artificiais, fazendo filmes verdadeiros e puros, ou tão puros quanto a máquina de Hollywood na época clássica conseguia produzir. Dessa nuance e dessa ousadia de contar histórias pessoais e poderosas ao mesmo tempo que a nota do entretenimento e do virtuosismo cinematográfico se mantinham elevadíssimas, nasceram outras obras íntimas e socialmente conscientes como ‘The Fugitive’ (1947), ‘The Quiet Man’ (1952), ‘The Sun Shines Bright’ (1957) ou ‘Seargent Rutledge’ (1960), anos à frente do seu tempo.
Mas se o período áureo de Ford ocorreu após 1935 e o seu primeiro Óscar com ‘The Informer’, há uma série de obras anteriores que atestam o seu génio e que podem hoje ser redescobertas com redobrado prazer. Na realidade, Ford passou anos a limar o estilo que caracterizaria o seu cinema mais famoso das décadas de 1940 e 1950, na escola dura do cinema mudo. Chegado a Hollywood através da mão do seu irmão (um actor e realizador hoje esquecido), Ford fez um pouco de tudo até começar a realizar em 1917. Seus são os famosos westerns mudos com Harry Carey. Seu é ‘Iron Horse’ (1924) o épico western que seria tão essencial para a definição do género como seria o seu próprio ‘The Stagecoach’ quinze anos depois. Mas se Ford era incrivelmente prolífero (dois ou três filmes por ano, um habito que manteria até quase ao final da década de 1940), e certo e seguro no seu trabalho, foi a partir de meados da década de 1930 que, pelo menos para mim, o seu cinema começou verdadeiramente a ficar influente e memorável. 1934 é um desses anos fulcrais na sua filmografia, nas vésperas do seu primeiro grande reconhecimento pela comunidade cinematográfica (os 4 Óscares que ‘The Informer’ recebeu). Ford fez três filmes nesse ano, onde se incluem ‘Judge Priest’ (do qual ‘The Sun Shines Bright’ é um auto-remake) e claro ‘The Lost Patrol’ (em português 'A Patrulha Perdida').
À primeira vista ‘The Lost Patrol’ parece um daqueles filmes rotineiros como tantos outros que se perderam na história do cinema. Baseado no livro ‘Patrol’ escrito por Philip MacDonald, e no filme inglês com o mesmo nome feito em 1929, ‘The Lost Patrol’ foi produzido nos estúdios RKO por Merian C. Cooper (que havia acabado de produzir ‘King Kong’, 1933) com um orçamento baixíssimo e contabilizando apenas 65 minutos de duração. Ou seja, à primeira vista é ‘apenas’ um remake, feito para ser uma first feature, mas que acabou por ser um sucesso crítico e de bilheteira. Porquê? Muito provavelmente, porque ao seu leme estava John Ford.
Para o cinéfilo o genérico inicial chamará logo a atenção. A música de Max Steiner (a única nomeação que este filme teve para Óscar) soará familiar. Isto porque o tema é quase igual ao de ‘Casablanca’ (1943) que o próprio Steiner comporia uma década depois. Auto-plágios à parte, os primeiros enquadramentos definem a paisagem que veremos durante toda a duração do filme: deserto, deserto e mais deserto. Estamos na Mesopotâmia, durante a Primeira Guerra Mundial, tendo o filme sido filmado nas Dunas de Buttercup, na Califórnia, e em Yuma, no Arizona. É algo invulgar um filme tão curto e tão contido desta época ter sido filmado em exteriores, mas isso era a marca de Ford. E de notar que, um ou outro claro cenário à parte, existe um enorme realismo neste ambiente. Ford leva-nos à Arábia sem sair dos Estados Unidos, e esse realismo ajuda, e muito, para nos enquadrar na história.
Uma patrulha de soldados a cavalo segue em caravana pelo deserto. O seu líder é um sargento cujo nome nunca é revelado, interpretado pelo gigante desengonçado Victor McLaglen, um actor que estaria sempre associado a Ford, geralmente interpretando brutamontes bêbados mas de bom coração em filmes como ‘The Informer’ (onde venceria o Óscar de Melhor Actor), ‘Fort Apache’ ou, notavelmente, ‘The Quiet Man’. Aqui, McLaglen não me convence totalmente, provavelmente porque o papel ‘sério’ não se adequa à sua personalidade e à pantomina geralmente inerente às suas interpretações. Ou talvez seja apenas por estar tão habituado a adorar o seu estilo de interpretação mais exagerada noutros filmes.
Logo na primeira cena, um dos soldados é morto por um tiro vindo algures do deserto, disparado por algum árabe que, até quase ao final, o filme se recusa a mostrar. O grande problema é que o soldado morto era aquele que havia decorado as ordens para a companhia, portanto sem ele a companhia não sabe o que fazer nem para onde ir. Passado pouco tempo, e com a invisível ameaça dos árabes sempre no seu encalço, a companhia fica perdida no meio do deserto. Por sorte chegam a um pequeno oásis, onde há água e algumas árvores de fruto. Mas após a alegria inicial, a companhia apercebe-se que ficou encurralada. Os árabes, sempre invisíveis (só no final o filme os mostrará), montaram o cerco ao encoberto das dunas. Se algum soldado se mostra ou tenta sair do oásis é morto. A companhia fica indefesa e não pode fazer nada senão tentar aguentar a pressão física mas também, principalmente, a pressão psicológica.
Depois desta premissa estabelecida, o filme consegue suster-se de forma surpreendente. Divide-se entre o retrato mais íntimo das personagens, através de conversas entre os soldados, e a inevitável exploração da sua degradação psicológica, à medida que as horas e os dias passam, os seus números ficam mais reduzidos, e a sua paranóia constantemente aumenta, sob as altas temperaturas e a ameaça dos tiros que surgem dos inimigos invisíveis no deserto. Actores como Wallace Ford ou Reginald Denny interpretam soldados, mas destaque tem que ser dado a Boris Karloff (o eterno Frankenstein) que aqui revela a sua qualidade de interpretação dramática que apenas raras vezes, devido ao seu sucesso como ‘o Monstro’, teve oportunidade de demonstrar. Karloff interpreta um soldado inglês eloquente mas algo simplório, devoto religioso, que à medida que o tempo vai passando fica cada vez mais maluco. Mesmo assim, no final, em estado já completamente insano, a sua interpretação é um pouco exagerada e talvez demasiado teatral. Do mesmo modo, como o homem que mais tenta suster o grupo nestas condições adversas, o sargento de McLaglen não consegue ter aquela ponta de dramatismo e intensidade que seria precisa para este papel. Mas que dizer do seu momento Rambo perto do final, paranóico, de tronco nu e metralhadora em punho?! Icónico. Atrevo-me a dizer que o cinema nunca teria visto nada igual até então.
Se não são as actuações que vendem este filme, é o seu estudo psicológico e a magnífica gestão da tensão, invulgares para um filme tão próximo do início da era do som, que o tornam memorável e um fascinante pedaço de cinema. As escolhas de Ford, focando-se sempre nos soldados e mantendo o inimigo invisível, negando momentos de pausa e nunca deixando o público esquecer-se do perigo sempre constante, são de louvar. Do mesmo modo, o argumento está escrito de forma inteligente, conseguindo dar profundidade a algumas personagens através de conversas breves sobre os seus desejos, os seus medos e as clássicas memórias ‘de casa’ e das miúdas que deixaram para trás para se alistar. Se nada disto é propriamente novo, girando em torno de temas clássicos, entrosa-se bem na história e ajuda o espectador a criar maior empatia com as personagens.
Por outro lado, se é a premissa do filme que é o seu principal ponto de interesse (os soldados encurralados num clima de constante tensão) as atitudes destes árabes invisíveis são um pouco suspeitas, no sentido em que parecem estar a trabalhar, realmente, em prol do filme, para aumentar essa tensão no público e o terror psicológico nos soldados. Note-se o momento em que um aviador avista os soldados encurralados e tenta aterrar. Mal põe um pé fora do avião, e não ouvindo os avisos do sargento, é imediatamente morto a tiro. Na cena a seguir o próprio sargento corre até ao avião e nada o atinge (nem sequer tentam disparar contra ele). E mais tarde, quando sobram apenas um número muito reduzido de soldados, os árabes poderiam facilmente (suponho eu) invadir o oásis. Não o fazem. E quando finalmente o decidem fazer, perto do final, parecem esquecer-se que ainda há soldados vivos, e põem-se ao descoberto demasiado despreocupadamente. Não faz muito sentido. Outra coisa, como se alimentam durante dias e dias? Os soldados têm a água e os frutos das árvores. Mas e os árabes? Ligaram a encomendar uma pizza? E não têm mais nada para fazer? Não têm que ir batalhar noutro sítio qualquer? Decidiram dedicar-se a ficar ali a fazer um cerco os dias que for preciso até ao último soldado morrer? O filme, como habitualmente, só vê a perspectiva dos soldados e esquece-se de pensar na psicologia do inimigo. Nesse sentido, e ouvindo-se frases bastantes depreciativas sobre os árabes em geral, o filme não parece muito datado na sua visão do inimigo relativamente a alguns filmes americanos contemporâneos e pode até suscitar algum interesse por esse paralelismo. A temática ‘ingleses no deserto combatendo os selvagens no início do século’ é muito Kipling-esca (ver ‘Gunga Din’, 1939, ou ‘The Man Who Would Be King’, 1975) e não será por acaso que um dos soldados cita precisamente Kipling numa ocasião.
Quando já quase nenhum soldado resta vivo, o filme aproxima-se do seu clímax. Entretanto, o fumo do avião despedaçado poderá atrair a tão preciosa ajuda de outra patrulha. Chegarão a tempo? Conseguirá algum soldado sobreviver? Com apenas 65 minutos, o filme avança rapidamente até ao seu desfecho pungente, mas esta dúvida mantém-nos interessados e na ponta da cadeira.
Muitos críticos chamam a ‘The Lost Patrol’ uma obra-prima pontilhada de falhas. Às vezes, os críticos também dizem coisas acertadas. É precisamente isso. A história de base constitui grande parte do interesse do filme, e não é de estranhar que se tenham seguido muitos remakes ao longo dos anos, como ‘Sahara’ (1943) com Humphrey Bogart. Mas é a contida e inteligente gestão temporal e espacial que John Ford lhe dá que o torna memorável e altamente influente. Diz-se, por exemplo, que o final de ‘Sete Samurais’ (1954) é um aceno ao final de ‘The Lost Patrol’. O facto de o filme ter apenas uma hora também faz com que vá sempre directo ao assunto. Não perde tempo com explicações ou construções desnecessárias como teria inevitavelmente de fazer um filme com 1h30 ou 2h. Aqui, cada plano é eficaz e essencial, e essa organização fluída e consciente é reflexo de um realizador que sabia o que e como filmar (e também onde; magníficas localizações), e que tinha plena consciência do produto final que estava a criar. Contudo, o que falha nesta engrenagem bem oleada são as actuações demasiado teatrais e a linearidade forçada da história, que com o desenrolar dos acontecimentos se vai tornando um pouco incredível.
Mas se nos abstrairmos disto encontramos um filme com uma forte mensagem e um sabor amargo no final que não era nada comum, mais uma vez, no estilo de Holllywood no início da década de 1930. Não é por acaso que chamei a Ford um ‘pioneiro’. Foi-o toda a vida. As temáticas que mais lhe interessavam, da honra, da coragem, da camaradagem, mas também do medo e da cobardia, ou seja, da condição humana em condições adversas, quer na guerra, na pobreza ou na conquista do oeste, iriam ser exploradas (e melhor) ao longo de toda a carreira subsequente, mas marcam presença, mesmo que pontualmente, em ‘The Lost Patrol’. Aqui, num filme sem um único papel feminino, Ford queria criar uma experiência de cinema de aventura que fosse intensa e surpreendente, seduzindo, chocando e prendendo o espectador durante uma hora. É mais do que bem-sucedido. Na altura do seu lançamento, ‘The Lost Patrol’ terá tido um impacto muito maior do que aquele que hoje terá no espectador que já viu muitos filmes claustrofóbicos e de terror psicológico imbuídos de realismo. Mas para uma abordagem tão precoce, o filme está surpreendente pouco datado e ainda consegue mexer com as nossas emoções.
Teatralidades e situações forçadas à parte, inerentes à era em que foi feito, ‘The Lost Patrol’ é um filme intenso e com uma enorme qualidade técnica, uma aventura directa e eficaz com várias camadas psicológicas (mesmo que apenas superficialmente exploradas) e uma excelente gestão de banda sonora, emoções e tempo/espaço fílmico. Sem ele, provavelmente não teríamos filmes como ‘Treasure of the Sierra Madre’ e, mais importante que isso, se calhar não teríamos um despoletar tão intenso da carreira de Ford em anos subsequentes. Este é provavelmente o primeiro grande filme sonoro de John Ford, e dizer isto é dizer muita coisa. Face a eventos recentes na história bélica mundial, o interesse neste filme pode continuamente ser renovado, mas não é preciso isso para reconhecer o excelente trabalho que aqui se apresenta.
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