Realizador: Paul Thomas Anderson
Actores principais: Joaquin Phoenix, Josh Brolin, Owen Wilson
Duração: 148 min
Crítica: Uau! Depois de passar o mês de Janeiro a ver filme atrás de filme nomeado pela Academia, filmes baseados em histórias verídicas com fórmulas mais que batidas e que, apesar da sua inerente qualidade, estimulam muito pouco a imaginação do cinéfilo, chego a ‘Inherent Vice’ (em português 'Vício Intrínseco') e tudo o que posso dizer é “uau”. ‘The Grand Budapest Hotel’ é fabuloso, tem um estilo e uma vida própria. ‘Birdman’ é vibrante, uma tour de force de actuação. ‘Jersey Boys’ é uma explosão de energia, brilhantemente filmada. Mas ‘Inherent Vice’ é Cinema, como muito poucos filmes conseguem ser.
Imagine, caro leitor, o tradicional filme noir. Imagine ‘Maltese Falcon’ (1941), ‘Big Sleep’ (1944), ‘Kiss Me Deadly’ (1955), os melhores filmes noir baseados nas obras de Raymond Chandler, Dashiell Hammett ou Mickey Spillane. ‘Inherent Vice’ consegue transpor, como muitos poucos filmes desde as décadas noir de Hollywood, este ambiente para o cinema moderno, como uma brilhante nuance, que bem poderia ter destruído o filme mas que felizmente foi usada com mestria em seu benefício. Já não estamos na década de 1940, já não temos a herança dos gangsters, o pessimismo da guerra mundial e os ambientes expressionistas fumarentos herdados dos mestres do cinema alemão que fugiram para Hollywood. Em vez disso, estamos na década de 1970, e temos a herança do flower power e da guerra do Vietname – uma era hippie que já havia deixado de ser bonita há algum tempo e que muitos já haviam ultrapassado. Mas não todos, e esses, tal como, metaforicamente, toda a sociedade, estavam ganzados até ao tutano. Nunca se viu um detective noir assim. Nunca se viu uma Los Angeles assim (e que diz LA diz S. Francisco, onde se passam a maior parte dos noir). ‘Inherent Vice’ é ‘Maltese Falcon’ ganzado. Joaquin Phoenix é Bogart a charros. O fumo das cenas já não vem do nevoeiro, mas dos infinitos cigarros de marijuana que são acendidos ao longo do filme.
Mas não fique o leitor a pensar que o filme é bom só por causa disso, ou que enaltece as drogas. Nada disso. É tudo uma questão de ambiente. E ‘Inherent Vice’ tem um ambiente fabuloso, porque equilibra na perfeição a homenagem a este género noir com um retrato absolutamente credível de uma década (ou pelo menos da ilusão dela). É este equilíbrio, e o que daí advém, que constitui o grande feito do filme. Vou caracterizar este filme como uma gigantesca trip noir niilista flower power. Um rótulo pomposo, talvez, mas inteiramente correcto, sendo que ainda há a agravante de ser extremamente bem filmado e bem actuado. Acho que isso diz tudo sobre a qualidade, a irreverência e a mestria deste filme.
Confesso que me surpreendeu bastante que ‘Inherent Vice’ assim fosse. O seu realizador / argumentista é Paul Thomas Anderson, o mestre do ‘ambiente’, um realizador de culto do cinema moderno, mas que ainda não me tinha convencido completamente. Vi todos os filmes de Thomas Anderson, com a excepção de ‘The Master’ (2012), uma única vez: Boogie Nights (1997), Magnolia (1999), Punch-Drunk Love (2002) e There Will Be Blood (2007). Admito a mestria na realização, na criação do tal ‘ambiente’ de época (mesmo que contemporânea) e na gestão das actuações. Mas os seus filmes, tal Scorsese, só me tinham conseguiram agarrar pela forma, não pelo conteúdo. E talvez seja por isso que o seu estilo de construção pausada, de realização estilizada tão bem tenha resultado em ‘Inherent Vice’ e tanto me tenha apelado. Pela própria definição do filme, do género, da natureza da história, é realmente a forma que interessa, e não o conteúdo. Assim, Thomas Anderson encontra o material perfeito para o seu estilo, e dessa união resulta aquele que é para mim o seu melhor e mais ousado filme; a sua obra de arte, a sua ‘masterpiece’.
O filme baseia-se no romance homónimo de Thomas Pynchon, e diz quem o leu (não eu) que se manteve extremamente fiel à obra. A história de base, na realidade, é o que menos interessa. É bastante simples se pensarmos nela no final, mas é dada de uma forma extremamente complexa ao longo do filme, com pistas falsas atiradas a torto e a direito, menções de nomes de personagens atrás de personagens que só fugazmente fazem parte da história para confundir a nós, público, e ao detective, e muitas pontas soltas que nunca chegam a ser explicadas no desenlace. Em suma, todos os ingredientes que um noir clássico tem de ter. Não funciona quando são dadas só por dar, só porque sim, só porque o género o exige (como Brian De Palma fez há uma década no pouco conseguido ‘The Black Dahlia’, 2006). Mas funciona se, mais uma vez, fizerem parte do tal ‘ambiente’, se forem oferecidas ao público com inteligência, como parte de uma teia que o detective vai desenrolando e que sabe que nunca irá compreender completamente. E nós também não. Mas lá está, isso é irrelevante para o desenlace da história, do filme e do nosso prazer como cinéfilos.
Como seria de esperar, o filme é narrado através de voz off. Mas não é a personagem principal quem narra, antes uma amiga desta, uma espécie de figura etérea transversal à história (e pouco relevante para ela) que contudo está mais que adequada à sua aura. Tem a vantagem ainda de ser uma voz off que está claramente a citar passagens do livro, uma literatura fluída e estilizada que cai bem no ouvido e que conduz a narrativa. Joaquin Phoenix está soberbo como o detective privado Larry Sportello, apelidado de Doc pois exerce a sua profissão a partir da fachada de uma clínica. Doc fuma “erva” em praticamente todas as cenas do filme, e por vezes está tão grogue e tão confuso no nevoeiro da sua mente, como está o filme no nevoeiro da sua história e dos seus cenários. O paralelismo entre personagem, história, sociedade e filme é mais que óbvia. Contudo, o filme tem imenso cuidado (demasiado até) para nos demonstrar que Doc não é agarrado (como outras personagens do filme) a heroína ou outras drogas pesadas. Assim fica retratado como uma espécie de ‘Dude’ (ver ‘The Big Lebowski’, 1998) e o público pode criar uma muito maior empatia com ele (e até rir-se em várias ocasiões), que noutro caso não aconteceria.
Um dia a proverbial femme fatale, Shasta, uma ex-namorada de Doc, aparece-lhe em casa. Shasta é mais uma fabulosa personagem do filme, tem tudo o que uma femme fatale deve ter mas sem o mínimo de cliché, e ganha vida numa performance a condizer de Katherine Waterston, filha do actor de ‘The Killing Fields’ (1984) Sam Waterston – quem sai aos seus não degenera. Shasta conta a sua história a Doc. Neste momento é amante de um magnata do imobiliário (Eric Roberts), mas suspeita que a mulher deste (Serena Scott Thomas) e o seu respectivo amante estejam a planear internar o milionário num asilo para lhe ficar com o dinheiro. Uma história que logo soa a falso, ou que pelo menos tem mais que se lhe diga, mas é a desculpa ideal para Doc investigar, principalmente porque poucos dias depois o milionário realmente desaparece. Mais tarde é a própria Shasta que desaparece. Então Doc investiga (mais ou menos!) durante as 2h30 de filme seguintes, desmascarando o mistério dos desaparecimentos, bem como uma falcatrua imobiliária e uma rede de tráfico de heroína pelo caminho.
Como disse em cima, a superfície da história é bastante simples; é basicamente o que resumi no paragrafo anterior. Mas é a investigação em si que se torna um xadrez impossível de deslindar, porque com cada camada que é retirada, duas, três ou mais tomam o seu lugar. Mas não importa muito se não seguimos a história (aliás nem vamos conseguir), pois a riqueza do filme está em vez disso no caminho do detective; está nas suas interacções, cena após cena, com todas as personagens (de todos tipos, géneros e feitios) e está na beleza, verbal e cénica, dessa interacção. Cruzam o caminho de Doc um policia apelidado de Bigfoot (Josh Brolin), o responsável oficial pela investigação e que no final (numa cena que não irei revelar) representa na perfeição a insanidade e o vazio da época; uma advogada do Ministério Público interpretada por Reese Witherspoon, que por sua vez também é amante de Doc; o advogado extremamente sleezy Benicio Del Toro; um informador infiltrado interpretado por Owen Wilson (o toque Wes Andersenesco da peça); uma misteriosa massagista sexual interpretada por Hong Chau; e ainda Martin Short, numa breve aparição como o director toxicodependente de uma clínica dentista que bem poderá ser a fachada para o tráfego de heroína.
Em ‘Kiss Me Deadly’, Ralph Meeker passa 90 minutos atrás de uma mala cujos conteúdos nunca são revelados (o proverbial McGuffin de Hitchcock, imitado por exemplo em ‘Pulp Fiction’ ou ‘Ronin’). Não é contudo o conteúdo da mala que interessa, nem o que se vai fazer com esse conteúdo, mas sim o rol de personagens peculiares, o disparar frenético de diálogos e a estilização das cenas. De igual forma, em ‘Inherent Vice’ , o estrondoso Doc de Joaquin Phoenix, o melhor detetive noir drogado de toda a história do cinema (vergonha não ter sido nomeado para os Óscares) passa 2h30min atrás de algo que desde o início prova ser intangível, uma verdade que nem sequer existe nem nunca existiu – uma metáfora, talvez, para o ‘conforto’ que se pode obter das drogas. Assim sendo, o filme não ganha pelo objectivo da busca, mas pela busca em si.
Primeiro essa busca é absolutamente cativante. Digamos que estamos a ver um episódio de ‘Dr. House’ e não percebemos nada de medicina. Ouvimos aquele corrido técnico médico mas em vez de estarmos enfadados, por não perceber, o episódio está feito de tal maneira que ficamos agarrados à espera da revelação no desfecho. O mesmo se passa aqui. A meio do filme podemos já nem nos lembrar quem é a pessoa de quem estão a falar (um dos inúmeros nomes citados para confundir o espectador), ou quem fez o quê. Mas o filme está tão bem feito, o enfoque nas personagens é tão profundo, o desenrolar do novelo tão viciante, que estamos completamente dentro da realidade fílmica desta obra, e não queremos desagarrar-nos.
O que nos leva ao segundo ponto. Existe em ‘Inherent Vice’ uma enorme compreensão (totalmente credível, não necessariamente realista) dos anos 1970 em todos os aspectos da produção, sem um único cliché (sim, estou a pensar em ti ‘American Hustle’). Não há o enfoque no cabelo afro de uma qualquer personagem, por exemplo, só para que o espectador se ria com um lugar-comum da década. Mas há uma captação fabulosa da mentalidade alienada da década, que existe em filmes como ‘The Parallax View’ (1974) de Alan J. Pakula ou ’The Conversation’ (1974) de Coppola. Voltamos de novo a uma palavra que já usei várias vezes nesta crítica: ambiente. O filme encontrou, com sucesso, o elo de ligação entre o ambiente noir dos anos 1940 e a paranóia alienada dos anos 1970. E é isso que oferece ao espectador, num pacote que inclui um grande design de produção (‘American Hustle’ foi louvado pelo retrato da década e este não, como é possível?!), grandes interpretações e uma realização mais que convincente. De notar por exemplo que não há um único plano em todo o filme em que a câmara esteja acima da altura dos ombros das personagens. Geralmente até está abaixo, olhando as personagens de baixo para cima. Em ‘There Will be Blood’ tal artifício fazia com que Daniel Day Lewis parecesse uma gigantesca figura imponente. Aqui quase tem o efeito inverso; demonstra um grau de intimidade com as personagens. Se elas estão perdidas no nevoeiro da noite, nós também. Não há ilusões. Só há uma existência niilista sem grande sentido, que tem de ser apimentada com a droga de eleição, seja ela o sexo, a heroína, o sucesso profissional, a marijuana, ou até, para algumas personagens, o amor. E todas as personagens, de uma forma ou de outra, buscam essa satisfação, por isso todas são interessantes, não necessariamente para a história, mas para o espectador, o que é muito mais importante.
Só lamento o filme ser demasiado grande. Para um filme que anda em espiral e não chega necessariamente a um desenlace bem arrumadinho, em que o caminho é que constitui a riqueza da história, 2h30min é tempo demasiado. Notou-se bem o número de pessoas que saiu da sala após 2h, e notou-se igualmente a quantidade de pessoas que, mesmo ficando até ao final, ficaram extremamente desapontadas com o desenlace. Quanto ao segundo ponto não sou da mesma opinião. Num filme destes, não se espera que no final tudo seja explicado, porque o que realmente interessa (a alma, as motivações, e a ilusão futura das personagens) o são. Quem matou quem e quem raptou quem é totalmente irrelevante. Mas quanto ao primeiro ponto estou de acordo com o público. Após duas horas, o filme claramente perde o gás, e Thomas Anderson parece já estar a provocar o espectador propositadamente, ai sim forçando a sua cartada de ‘realizador artístico e independente’, revertendo ao seu estilo habitual e estragando um pouco da fantástica ilusão que o filme estava a ser.
Mas tirando este esticar da história, exagerando o niilismo e o alienismo, achei ‘Inherent Vice’ um filme espectacular, um feito cinematográfico incrível e memorável. Mas não é, nem de perto nem de longe, um filme para as massas, um filme para todos os públicos. As patéticas duas nomeações para Óscar, Melhor Guarda Roupa e Melhor Argumento, são prova disso. Aliás, quando a Academia não sabe o que fazer relativamente a um realizador inovador e artístico, ou simplesmente diferente, que não seja comercialmente acessível, remete-o para a nomeação de Melhor Argumento (Tarantino, Wes Anderson, etc). ‘Inherent Vice’ é para outro público, o público que gosta do cinema noir, que está familiarizado com ‘Out of the Past’ (1947), ‘The Big Sleep’ ou ‘Kiss Me Deadly’, e que o acompanhou à medida que foi sendo reabilitado ao longo das décadas em filmes como ‘Harper’ (1966), The Long Goodbye (1973) ou Chinatown (1974). ‘Inherent Vice’ é uma espectacular reinvenção do género, um filme inteligente e artístico, consciente na sua construção e estrutura, mas natural nas suas actuações e na sua alma. É um filme de ambientes, estilizados mas cheios de verdade cinematografia, e uma das obras verdadeiramente originais do cinema americano de 2014, a par de ‘The Grand Budapest Hotel’, ‘Birdman’ ou ‘Interstellar’. Seria um justíssimo candidato a Óscar de Melhor Filme. Assim sendo é “apenas” um filme para ser descoberto e redescoberto pelos cinéfilos, a ser falado, comentado, criticado e exibido daqui a décadas como uma obra-prima, quando os contemporâneos que hoje ganham prémios forem apenas uma estatística numa lista.
Repito: ‘Inherent Vice’ é uma gigantesca trip noir niilista flower power. Nunca se fez um filme assim e é o mais perto que o cinema americano esteve este ano de verdadeira arte. E essa originalidade, nos dias de hoje, vale ouro, independentemente do seu valor comercial.
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