Realizador: Clint Eastwood
Actores principais: Bradley Cooper, Sienna Miller, Kyle Gallner
Duração: 132 min
Crítica: ‘American Sniper’ é a 34ª longa metragem de Clint Eastwood que, se o leitor costuma ler estas páginas, já percebeu que eu considero um génio. É sem dúvida o maior autor ainda em actividade regular no cinema americano e os seus filmes nunca deixam de surpreender. Sim, demorou quase 20 anos até que fosse reconhecido na América, para além de um ‘cowboy’ ou um ‘polícia duro’, mas a aclamação que finalmente obteve foi inteiramente merecida. De ‘Play Misty for Me’ (1971) até ‘Jersey Boys’ (2014), lançado há uns meros meses (ambos que já critiquei) Eastwood prova, de filme para filme, a sua capacidade, que a terceira idade aguçou e não fez esmorecer. E se tivemos de esperar 3 anos para Eastwood voltar à realização, depois de um par de filmes menos conseguidos (‘J. Edgar’ e ‘Hereafter’, também já criticados, não me fizeram muito o gosto), a verdade é que, ao regressar, Eastwood regressou com tudo o que tinha, mostrando a sua enorme versatilidade e a sua capacidade de tornar histórias simples em peças delicadas, extremamente bem executadas tecnicamente, e com, acima de tudo isto, a capacidade de entreter. Daí o sucesso quer crítico, quer comercial.
Chamei a ‘Jersey Boys’ o melhor filme do ano, pois tinha tudo: qualidade técnica, boas interpretações, vitalidade, excelente ritmo e muita alegria. E antecipava as nomeações aos Óscares. Contudo, foi o filme que Clint Eastwood lançou na América pouco tempo depois (a Portugal chegou apenas esta semana) – ‘American Sniper’ que conseguiu obter essa atenção, arrecadando 6 nomeações: Melhor Filme, Actor Principal, Argumento, Montagem, Som e Efeitos Sonoros. Em 2008 Eastwood lançou também dois filmes: ‘Gran Torino’ e ‘Changeling’. E foi ‘Changeling’ que foi nomeado para os Óscares enquanto ‘Gran Torino’ ficou a ver navios. Qualquer cinéfilo achou isso uma perfeita injustiça. Num ano em que ‘Slumdog Millionaire’ ganhou Melhor Filme e Sean Penn Melhor Actor por ‘Milk’, ‘Gran Torino’ e o próprio Eastwood (que ganhou Óscares por Realização e Produção, mas nunca por Actor) mereciam mais. Do mesmo modo, este ano, acho que foi o parente pobre que recebeu a atenção. ‘Jersey Boys’ era, na minha óptica, um candidato forte a Melhor Filme e a Melhor Actor. Em vez disso temos o menos conseguido, mas muito mais patriótico, ‘American Sniper’ a fazer as honras.
Mas se pensarmos bem isso não é nada surpreendente, percebendo a óptica americana. ‘American Sniper’ é uma biografia do soldado Chris Kyle (interpretado brilhantemente por Bradley Cooper). Kyle está reputado com o sniper mais letal da história bélica da América, tendo obtido inúmeras condecorações pelos quatro períodos de missão que esteve na Guerra do Iraque, após o 11 de Setembro. Tragicamente, já retirado das forças armadas, Kyle morreu em 2013 num campo de treinos de tiro na América, assassinado por um soldado traumatizado. O filme, baseado na autobiografia do próprio Kyle publicada em 2012, é claramente patriótico, e como consequência um tudo ou nada tendencioso. Felizmente Eastwood é, como sempre foi nos poucos filmes de guerra que fez (‘Letters from Iwo Jima’, ‘Flags of Our Fathers’, ‘Heartbreak Ridge’), subtil, e focado não na política do conflito mas nos homens que fizeram parte dele.
Portanto ‘American Sniper’ segue, com enorme eficácia (e algum alívio para quem está farto de filmes estereotipados) esta linha de pensamento, não se deixando seduzir pelo heroísmo fácil da personagem cinematográfica de Kyle, nem a endeusando tornando-a num herói trágico. Pelo contrário, na maior parte do filme Kyle é uma personagem bastante humana, com decisões e atitudes credíveis. Para isso também ajuda a enorme poupança de palavras e cenas que o argumento conciso e focado (da autoria de Jason Hall) contém. O reverso da medalha é que esta poupança não torna o filme muito crítico nem muito profundo. O filme observa e mostra. Raramente comenta, e o seu silêncio faz com que inconscientemente se esteja a enaltecer o clássico ideal americano. O próprio silêncio dos créditos finais (o espectador vai estranhar sair da sala sem som) é um convite à reflexão, mas conseguimos extrapolar grandes reflexões da história trágica do filme? Não estou muito seguro disso. O filme é um epitáfio extremamente digno à vida do soldado Kyle, e, se quisermos, um tributo aos sacrifícios dos soldados americanos. Mas é mais uma homenagem à vida pública de Kyle, não tanto à privada, é um narrar dos seus feitos bélicos mas não propriamente do seu íntimo (que fica coxo em comparação), e uma reflexão não muito profunda da natureza e do sentido da guerra. Não me importo nada que o filme se foque no homem. Até prefiro. Mas de certa forma tem que haver sempre essa capacidade de extrapolação para o todo, para o filme fazer sentido. Não creio que ‘American Sniper a tenha.
O filme começa precisamente com o cliffhanger do trailer. Kyle está num telhado de um edifício em ruínas no Iraque, deitado, na sua posição de sniper. Observa pela objectiva uma mulher e uma criança a deslocarem-se com uma bomba na direcção dos soldados americanos. Pede autorização para disparar. Dizem-lhe pelo intercomunicador que a decisão terá que ser dele. Hesita. Disparará ou não? O filme só responde meia hora depois. Pelo caminho, assistimos de rajada, mas com a tal inteligência estrutural do argumento de que falei, à evolução de Kyle. Temos algumas cenas de infância, em que o pai faz dele homem e o ensina a disparar, e depois chegamos à idade adulta, em que Kyle (agora Bradley Cooper com uns quilos a mais) é um cowboy que anda de rodeo em rodeo a beber com o irmão, sem grande rumo para a vida. Isto é, até ao 11 de Setembro. Aí alista-se nos NAVY SEALS, e mais tarde na divisão dos snipers. E antes de ser enviado para o Iraque, o filme ainda faz duas manobras clássicas.
Primeiro oferece as proverbiais cenas de ‘treino’ com os sargentos mandões a berrarem a torto e a direito. Eastwood explorou isso durante mais de uma hora em ‘Hertbreak Ridge’ (1985) mas aqui reconhece a irrelevância destas cenas para a história por isso é muito mais sintético, e como consequência, mais eficaz. Segundo, antes de partir, Kyle ainda conhece Taya (Sienna Miller) num bar, que se irá tornar sua esposa. Gostei de Sienna Miller, que já não via há uns anos num filme. Mais velha, já não depende tanto da sua sensualidade, o que permite que se foque mais na atuação. Contudo, é de lamentar que a partir do momento em que Kyle vai para a Guerra, as cenas de Taya se reduzam a uma grande choradeira: chorar ao telefone quando ele está longe, chorar pela inadaptação à vida civil quando ele está perto, chorar por ter de criar os filhos que eventualmente têm sozinha…
Voltamos ao Iraque à mesma cena do início. ‘Tour 1’ diz a legenda. A partir daqui o filme vai saltando, com previsibilidade, entre os States e os cenários da Guerra do Iraque, traçando a carreira de Kyle. Num cá e lá o filme mostra uma ou duas missões da primeira ‘tour’, depois uma ou duas cenas de inadaptação quando Kyle regressa aos Estados Unidos, e depois mais uma ou duas missões da ‘Tour 2’, e assim sucessivamente, até chegar ao seu último dia no Iraque e ao seu regresso definitivo a casa. Por um lado resulta porque o argumento é bastante eficaz, algo que aliás já tinha salientado pela positiva na crítica de ‘Jersey Boys’. Os diálogos são concisos mas permitem transmitir claramente os eventos e o arco das personagens, sem precisar de embelezamentos desnecessários. E as cenas estão filmadas com mestria e intensidade. Mas por outro lado algo falha nesta estrutura.
A inadaptação civil de Kyle é toda filmada da mesma maneira. É sempre dada como um par de cenas em que Taya fala com ele e ele não ouve e fica apático, em que fica assustado pelo barulho de uma torradeira a pensar que é uma granada, em que tem instintos violentos que só com esforço consegue retrair, e em que repete frases feitas sobre o dever, sobre o quão mauzinhos são os árabes e que tem de ir ajudar os seus irmãos de armas (algo que já gerou enormes motivos de discussão na América, mas já aí vamos). Ao fim da terceira vez que regressa a casa eu, pessoalmente, já estava um pouco farto de ouvir a mesma coisa e assistir às mesmas cenas, principalmente porque bem recentemente ‘The Hurt Locker’ (2009) explorou bastante bem este ponto (ou pelo menos bem melhor que ‘American Sniper’). E tal como o soldado Jarnes de Jeremy Renner, o soldado Kyle de Bradley Cooper só está no seu meio quando está na guerra – a guerra como um vício de adrenalina, misturado com o vício do dever.
Mas mesmo em cenário de guerra Kyle pode estar bem, mas não creio que o filme o esteja. As cenas iniciais impactam e prendem o espectador à trama, embora, muito ligeiramente, caiam no lugar comum de mostrar Kyle como um super-soldado, que percebe coisas antes dos restantes, o que lhe permite sempre salvar o dia. Felizmente, o filme não recorre a isto muitas vezes. Curioso notar, também, que só na primeira meia hora Kyle demonstra os seus talentos como sniper. Depois disso, está em missões “normais”, no terreno, muito menos interessantes, e até chega a parecer que Kyle não é mais sniper. O filme, eventualmente, retorna a isso, mas para cativar o espectador cria um nêmesis. De repente, o filme já é uma luta entre dois super-snipers; Kyle e um especialista Sírio, que até chegou a ganhar uma medalha nos Jogos Olímpicos – o típico micro cosmos da guerra. Mas para quem viu o genial ‘Enemy at the Gates’ (2001) de Jean-Jacques Annaud, um espectacular filme de guerra centrado em snipers, toda a acção que ‘American Sniper’ possa demonstrar neste sentido fica extremamente insossa em comparação. E a próprias missões, não obstante terem sido com certeza reais, não são assim tão interessantes cinematograficamente. Eastwood repete a sua fórmula de ‘Invictus’ (2009). Nesse filme, as cenas de rugby era muito pobrezinhas, como se estivessem a provocar o espectador. Só na final do torneio é que finalmente se sentia toda a acção do jogo. Aqui acontece o mesmo; as cenas de guerra vão sendo interessantes mas não muito interessantes, e só na derradeira missão o filme explode em tensão e magnificência. Aí sim, temos uma fantástica sequência.
No final, pode-se dizer que Eastwood produziu um filme sólido e cativante, que não convence muito como um filme, digamos, ‘de guerra’ (também não o pretende ser), mas apesar das suas valências também não convence muito como o drama de um soldado. ‘American Sniper’ chega a ser delicado, mas nunca pungente e é uma homenagem mais que justa, mas não profunda, ao ‘mito do soldado’, muito embora Bradley Cooper faça um papelão. Como disse no início, é um epitáfio digno à vida deste homem, que não pretende criticar nem julgar. Está no tom das biografias cinematográficas de antigamente, mas não está no tom das biografias que se vêm no cinema actualmente, que tornam as suas personagens na sétima maravilha da humanidade, e que julgam e criticam a sociedade através delas.
Por isso mesmo as críticas a ‘American Sniper’ para os lados da América são uma grande parvoíce. Que tem se Kyle chama aos árabes animais? Se calhar até está escrito na sua autobiografia, quem sabe? Se chamou, a culpa é dele, e não de Clint Eastwood ou Bradley Cooper. Porque aliás nunca se vê Eastwood a defendê-lo. O filme é patriótico, sim, mas no sentido em que é um hino ao soldado americano e aos motivos pelo qual luta (na perspectiva da América, claro está, mas outra perspectiva não podia ter!). Se Kyle fosse politicamente correcto com os jihadistas provavelmente não estaria a lutar no Iraque. E os seus instrutores do exército também não irão certamente ser politicamente correctos se estão a treinar homens para enfrentar a morte. Eastwood não julga, oferece apenas o arco deste homem e no final faz-lhe uma vénia, em sinal de homenagem. Kyle não era perfeito, embora soubesse o que estava a fazer. Conscientemente negligenciou a mulher e os filhos para lutar no Iraque. E teve um final trágico de que não teve culpa (nem aliás tiveram os terroristas). Eastwood limita-se a contar a sua história e faz-lhe um minuto de silêncio, cinematográfico e até literal, nos créditos finais. Agora se a guerra onde o homem estava a lutar é justa ou não é justa, isso é outra história, e Eastwood não entra por aí. E ainda bem.
‘American Sniper’ não é uma obra-prima, nem um dos melhores filmes dos últimos anos de Clint Eastwood, e as nomeações para os Óscares são um pouco rebuscadas. Mas ao menos, no meio de tantos filmes ‘baseados em factos reais’ este tem qualidade inerente e ponta por onde se lhe pegue, mesmo que alguns embelezamentos custem a engolir (custam sempre). Em termos do espólio ‘filmes de guerra’ de Eastwood, está aqui um produto mais humano e mais sincero do que ‘Flags of Our Fathers’ (que se perdia na sua busca pela humanidade das personagens), mas um produto que não consegue chegar aos calcanhares da essência da guerra e dos homens que a lutam que Eastwood revelou no magistral ‘Letters from Iwo Jima’ (2006). ‘American Sniper’ vê-se bem e não choca nem comove muito, tomando uma abordagem mais inteligente do que mostrar apenas o horror pelo horror, uma abordagem que só ofenderá quem enfiar a carapuça. Mais do que o mito, mais do que a ‘Lenda’ (a alcunha que dão a Kyle no Iraque), Eastwood filma o homem. Não o faz com profundidade. Paciência. Já o fez noutros filmes e certamente fará em filmes que virão. ‘American Sniper’ é um filme suficientemente bom para o que se propôs ser. E isso basta.
Das histórias mais completas, excelente recreação. Hoje, existem muitos filmes de guerra, temos sempre apenas a parte das batalhas entre as duas nações. Ele foi um dos melhores filmes do Oscar 2015, é que o par mostra o desfecho da história de amor que vive o protagonista, certamente um filme que pode ser visto a partir incio ao fim.
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