Realizador: Vicente Amorim, Guillermo Arriaga, Stephan Elliott, Sang-soo Im, Nadine Labaki, Fernando Meirelles. José Padilha, Carlos Saldanha, Paolo Sorrentino, John Turturro, Andrucha Waddington, César Charlone
Actores principais: Fernanda Montenegro, Vincent Cassel, Harvey Keitel
Duração: 110 min
Crítica: Em 2006 gostei bastante de ver ‘Paris, je t’aime’. E também apreciei bastante revisitá-lo já duas ou três vezes. É um filme bem conseguido, que sucede em misturar confortavelmente e aparentemente sem esforço o romance, a mística da cidade das luzes (excelentemente captada), e histórias cativantes. A ideia de cada realizador filmar uma curta e juntar tudo num filme não era nova, mas com ‘Paris, je t’aime’ isso certamente foi elevado a outro patamar, em termos de cinema mainstream. Algumas curtas são melhores que outras, claro, mas fica na retina a interessante palete de estilos, do surrealismo ao terror ao drama ao tragicómico ao romance, todas equilibradas para formar um todo coerente (embora nem curtas nem personagens se cruzem) e cada uma ganhando um interesse adicional por oferecer um pequeno twist no final.
Mas toda esta mestria artística que ‘Paris, je t’aime’ possui, esta sua delicadeza, perdeu-se completamente em ‘New York, I Love You’ (2008). Os americanos não gostam que os outros façam bons filmes, ou pelo menos filmes com sucesso, e por isso tentam imitá-los, mal possam, em seu território. ‘Paris je t’aime’ criou uma moda, a das ‘Cities of Love’, e de repente inúmeras cidades do Mundo chegaram-se à frente a dizer que queriam fazer o mesmo (Shanghai, Jerusalém). Mas foi Nova Iorque, como não podia deixar de ser, que chegou primeiro. Contudo, o filme existe no universo de um ‘Valentine’s Day’ (2010), de um ‘He’s Just Not That Into You’ (2009) e faz a estupidez pegada de substituir a arte e o romance por um comercialismo barato, muito embora a maior parte dos realizadores seja estrangeiro. Alguns segmentos até chegam a cativar, mas no global está mal escrito e os twists de cada curta são extremamente previsíveis, semi-inteligentes, e cópias menores do que se viu no filme em Paris. Não gostei nada de ‘New York, I Love You’ e só o vi uma única vez, no cinema em 2008.
Talvez por isso a moda tenha amainado um pouco e deixou-se de falar, por alguns anos, das cidades do amor. A moda foi substituída, creio, pelos filmes de Woody Allen. Todas as cidades passaram a querer um, inclusive, diz-se, o próprio Rio de Janeiro. Talvez tenha sido por Woody ter recusado que o Brasil se tenha voltado para as ‘cidades do amor’. Ou talvez tenha sido por o Brasil ter um espólio de novos realizadores bastante interessante. Mas o motivo mais óbvio parece ser o claro aumento de popularidade do próprio Brasil, como destino cultural e de turismo. Mesmo antes de assistirmos à primeira imagem do filme, já se tornam óbvios os esforços que a cidade do Rio fez para produzir um filme destes. Durante quase um minuto, somos brindados com logotipos de várias entidades patrocinadores, onde se percebe o quanto os fundos estaduais brasileiros, e a Câmara Municipal do Rio de Janeiro, investiram neste filme. O Rio de Janeiro está hoje na moda, está a limpar a sua imagem de cidade perigosa, e este filme sai na altura propícia, mesmo entre o Mundial e os Jogos Olímpicos.
Mas o que os senhores do Rio não perceberam foi que ‘Paris je t’aime’ não tinha por objetivo promover Paris. As histórias simplesmente se passavam lá, e eram inspiradas pela cidade. Mas a cidade não era o factor mais importante, era apenas um simpático pano de fundo. E nem mesmo o filme de Nova Iorque enveredava por esse caminho. Já o do Rio parece, na maior parte do tempo, um enorme filme promocional da cidade. Em inúmeras curtas, essa promoção da cidade ultrapassa até a própria história, as próprias personagens, que são meros apartes num mostrar contínuo dos atributos do Rio; as paisagens de tirar o fôlego, as praias, o Pão de Açúcar, etc, etc. E este é um Rio de Janeiro bem selecto, o mesmo Rio de Janeiro do filme ‘Rio’ (2011). Ou seja, um Rio de Janeiro em que não se vê uma única favela (nem mesmo nos inúmeros planos ‘bird’s eye view’), um Rio de Janeiro praticamente só de brancos (num filme com tanta gente há umas três personagens mulatas), um Rio de Janeiro sem crime, um Rio de Janeiro onde até os pobres são felizes por ser pobres só porque vivem naquela cidade (ver segmento da Fernanda Montenegro), um Rio de Janeiro onde, tirando problemas de amor, só há samba e praia e alegria e belas paisagens. ‘Rio, Eu Te Amo’ retrata um Brasil longe dos universos que José Padilha (‘Tropa de Elite’) e Fernando Meireles (‘Cidade de Deus’), ambos com curtas neste filme, já nos mostraram. Mas admitamos que isso não é necessariamente mau já que há várias facetas em todas as cidades do mundo, e não se precisam de mostrar sempre todas. Também há crime em Londres e o ‘Love Actually’ não o mostrava. Se admitirmos esta fantasia, se esquecermos a publicidade barata e a auto-promoção, e nos concentrarmos no romance, ‘Rio, Eu Te Amo’ até vai tendo valências na actuação, no maravilhoso estilo visual (o filme é belíssimo, extremamente bem filmado) e na qualidade intrínseca de algumas (não todas, nem a maioria, mas algumas) curtas, que o salvam.
Durante pouco menos de duas horas, somos brindados com 10 curtas, realizadas por 10 realizadores diferentes (mais as transições, a cargo de Vicente Amorim), todas passadas nas belas paisagens do Rio. Os grandes nomes do cinema brasileiro estão aqui (Meirelles, Saldanha, Padilha – todos menos Walter Salles, provavelmente porque já teve uma curta no filme de Paris…) mas o filme conta também com um vasto leque de realizadores internacionais, dos quatro cantos do Mundo. Ao contrário do filme de Paris e do de Nova Iorque, ‘Rio, Eu Te Amo’ segue o esquema das comédias-românticas em mosaico americano, imitando ‘Love Actually’, e quer no início, quer ao longo do filme, várias vezes as personagens vão-se cruzando, chegando até a trocar pequenos diálogos entre si. É muita personagem, por isso atenção leitor aos pormenores destas interacções (numa segunda visualização do filme ficará tudo mais fácil certamente). E depois o filme agarra-se a uma dessas personagens, para nos mostrar uma pequena curta.
Em ‘Dona Fulana’, realizada por Andrucha Waddington, Fernanda Montenegro interpreta uma idosa que vive na rua por opção, depois de ter abandonado todas as coisas materiais. Apesar de a acharem louca, é nas ruas e na pobreza que encontra a felicidade nas pequenas coisas.
Em ‘La Fortuna’ (realizada pelo italiano Paolo Sorrentino, que venceu este ano o Óscar de Melhor Filme estrangeiro com ‘La grande bellezza’), Emily Mortimer é a muito mais nova, e aparentemente interesseira, mulher de um inválido Basil Hoffman. Mas num dia em que visitam a praia das Sereias, um twist inesperado poderá acontecer.
Em ‘A Musa’, provavelmente o melhor segmento do filme, realizado por Fernando Meirelles e César Charlone (o director de fotografia de ‘Cidade de Deus’), Vincent Cassel interpreta um homem que faz esculturas na areia e procura o seu amor pelos passeios do Rio.
Em ‘Acho Que Estou Apaixonado’, realizado por Stephan Elliott (realizador de ‘The Adventures of Priscilla, Queen of the Desert’, 1994), Ryan Kwanten (da série ‘True Blood’) interpreta uma estrela de cinema que chega ao Brasil e só quer ir para o hotel descansar. Mas mal vê o Pão de Açúcar fica vidrado e mete na cabeça escalá-lo. Fá-lo-á, com a ajuda insuspeita do seu motorista (Marcelo Serrado) e pelo caminho, ambos reencontram-se a si próprios.
Em ‘Texas’, de Guillermo Arriaga (o argumentista dos filmes de Inarritu), Land Vieira interpreta um pugilista que perdeu um braço num acidente, casado com uma ex-modelo presa a uma cadeira de rodas (Laura Neiva), devido ao mesmo acidente. A precisar de dinheiro para a operação dela, aceita uma verdadeira ‘proposta indecente’ de um misterioso gringo…
Em ‘O Vampiro do Rio’, realizado pelo coreano Sang-soo Im, e de longe o pior segmento (e pouco original, já que o filme de Paris também tinha um vampiro interpretado por Elijah Wood), Tonico Pereira interpreta um estranho empregado de hotel que à noite revela ser o Vampiro Líder do Rio.
Em ‘Pas de Deux’, de Carlos Saldanha (do Blu-Sky Studios), Rodrigo Santoro é um bailarino que se divide entre a oferta de ir para uma companhia americana e o amor à sua namorada, outra bailarina da companhia do Rio.
Em ‘Quando não há mais Amor’, com e realizado por John Turturro, um casal tem a sua última discussão antes do adeus. A mulher é interpretada por Vanessa Paradis, que também canta.
Em ‘Inútil Paisagem’, o segmento mais controverso (e que teve em sérios riscos de ser cortado do filme), um homem (Wagner Moura, o fantástico Coronel Nascimento de ‘Tropa de Elite’), voa de parapente em redor da estátua do Cristo Redentor e, num monólogo, tira satisfações à estatua sobre as coisas más que se passam na cidade e na sua vida.
Finalmente, em ‘O Milagre’, de Nadine Labaki (a realizadora libanesa de ‘Caramel’), a própria contracena com Harvey Keitel (que é quem mais se cruza com as outras personagens e que demonstra um fantástico conhecimento de português!). Numa estação de comboios encontram um pequeno miúdo (Cauã Antunes, um achado do Cinema) que está à espera de uma chamada de Jesus num telefone público. O desenlace trará um sorriso à boca de qualquer espectador.
E há ainda as transições, onde Cláudia Abreu, Débora Nascimento e Michel Melamed como o taxista, vão cruzando o caminho das outras personagens…
Um dos maiores pontos a favor de ‘Rio, Eu te Amo’ é que, para um filme com tantos realizadores e argumentistas, o seu ritmo está bastante bem construído. Há um equilíbrio certo e uma coerência entre todas as curtas, e a montagem é bastante fluída, auxiliada pelos constantes sons da música brasileira na banda sonora (há inclusive uma participação da cantora Bebel Gilberto como ‘o Cúpido’). Neste enquadramento só mesmo a curta de John Turturro não se adequa, já que poderia estar inserida quer no filme de Paris quer no de Nova Iorque, sem qualquer alteração. Safa-se contudo por ser uma das melhores curtas do filme, embora a discussão do casal tome um estilo teatral (faz recordar os filmes dos anos 1950 e 1960 baseados em peças de teatro), ao qual infelizmente nem Turturro nem Paradis conseguem corresponder em termos de actuação. Mas quando Paradis começa a cantar à beira mar, ficamos hipnotizados. Sensivelmente na sua metade, o filme chega literalmente ao seu paraíso, muito mais perfeito que as vistas do Corcovado ou qualquer outro artifício que mostra. E teve que ser uma francesa a fazê-lo, e a única curta que não promove abertamente o Rio a consegui-lo. É um paradoxo.
Outra das mais-valias do filme é o seu visual. Se o filme de Paris era um meio-termo entre o artístico e o comercial, e o filme de Nova Iorque era completamente comercial, este terceiro filme, no Rio, aproxima-se mais da ponta oposta. Ostenta uma mestria visual invejável, nos planos e na fotografia, e uma veia artística, de postal ilustrado, bastante acentuada, muito menos sustenta nos diálogos do que é costume neste tipo de filmes (há curtas completamente sem diálogos, como a magistral ‘A Musa’ – Vincent Cassel diz mais sobre o amor com o olhar do que todos os actores de ‘New York, I Love You’ nos infinitos diálogos sobre relações). E é também de salientar a magnífica cena de bailado de ‘Pas de Deux’, uma manobra ousada de Saldanha, na sua primeira vez a dirigir actores de carne e osso. Constitui outro momento de suster a respiração de tamanha beleza, envolto numa curta com mais uma história batida e pouco interessante; um comentário que se pode aplicar a todo o filme.
E por fim destaco também actuações que apreciei bastante; a de Emily Mortimer, a de Vincent Cassell, a de Claudia Abreu, a de Harvey Keitel (um mestre), e, há que dizer, do pequeno Cauã Antunes. Magnífico. Espero que alguém pegue nele e o transforme numa gloriosa child star.
Mas apesar destas valências todas, a maior parte do filme existe no outro reverso da medalha. Há segmentos claramente maus e desinteressantes, como ‘O Vampiro do Rio’ e ‘Acho que estou apaixonado’. Este último é quase patético na forma como promove o Pão de Açúcar como a nona maravilha do Mundo, e na forma como faz referências aos ícones brasileiros que (acham eles) o público internacional vai reconhecer. Pélé é mencionado umas quatro vezes em todo o filme (muito me surpreende não ter entrado). Inclusive, o desejo do pequeno Cauã é ter uma bola assinada pelo Pélé. Um miúdo de 6 anos no Brasil não quereria nos dias de hoje uma bola assinada pelo Neymar? Por outro lado, segmentos como ‘La Fortuna’ ou ‘Texas’ tentam ser artisticamente inteligentes, ao acabarem em suspenso, mas assumindo que o final é claro e não ambíguo como acaba por ser, o que é um novo paradoxo e lhes retira a classe que estavam a ter.
E por fim, o que mais me incomodou foi essa ideia de que até os pobres são felizes por serem pobres, só porque vivem no Rio. Os pobres deste filme são os pobres de ‘telenovela brasileira’. Curtas como ‘Dona Fulana’ e ‘O Milagre’, por mais interessantes que possa ser, não analisam as consequências das suas próprias histórias. Qual o destino do pobre miúdo na estação? Quanto tempo vai ficar longe das malhas do crime e da droga que já levou o seu irmão (embora o filme seja incrivelmente subtil a insinuar este facto). E a idosa? Vai morrer de frio ou fome na rua certamente. O segmento de Wagner Moura, ‘Inútil Paisagem’, é o único que questiona esta visão idílica do Brasil, e ao fazê-lo, lança uma sombra de dúvida sobre todo o filme. Não admira que tenham ameaçado cortar a sua curta. Mas ainda bem que não o fizeram. Demonstra alguma consciência.
No final ‘Rio, Eu te Amo’ é um filme um pouco inconsistente. Não é muito bem-sucedido como comédia romântica, ou um filme sobre o amor, pois a maior parte das curtas só muito fugazmente toca esse tema, e não há nenhuma que o aprofunde minimamente. Não é muito bem-sucedido como filme de qualidade pois a maior parte das curtas não a tem. A única coisa em que é extremamente bem-sucedido é na sua promoção do Rio de Janeiro, como uma cidade idílica, pela qual todos se podem, isso sim, apaixonar, e, claro está, visitar. E esse é o grande objectivo. Mas para isso, na minha opinião, deviam fazer um anúncio, não um filme.
‘Rio, Eu te Amo’ é um dramazinho romântico levemente engraçado, com algumas pérolas escondidas pelo meio, e um enorme postal promocional do Rio de Janeiro. E mais nada. É perfeito para o desfruto de audiências pouco exigentes por esse mundo fora, e para uma tarde de domingo bem passada num sofá, mas não é nada memorável, e está a anos-luz das ‘promoções’ de Woody Allen das cidades europeias. Contudo, estou seguro que o público português irá adorar o filme, obcecados pelo Brasil, pelo Rio e pela cultura brasileira como são. E é mais que provável que o filme irá estimular o turismo no Rio de Janeiro. Score. Missão cumprida. Contra estes objectivos cumpridos, a qualidade cinematográfica é apenas um mero aparte.
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