Realizador: Clint Eastwood
Actores principais: Clint Eastwood, Jessica Walter, Donna Mills
Duração: 102 min
Crítica: Eastwood. Clint Eastwood. Quanto mais velho fico, quantos mais filmes vejo, quanto mais sei de cinema, mais aprecio os filmes de Eastwood. Com o seu low profile, com o seu ritmo certo, seguro e solido, tornou-se, ao longo de uma carreira de já mais de 40 anos, e outros tantos filmes, um dos maiores artistas cinematográficos americanos da segunda metade do século XX, e até, porque não dizê-lo, de sempre. Ainda recentemente lhe tirei o chapéu por ‘Jersey Boys’. Quando são outros realizadores que estão na ribalta e são idolatrados pelo público e pelos meios de comunicação social, Eastwood, de mansinho, fez um dos melhores, senão o melhor (a par de ‘Interstellar’), filme americano de 2014. E tudo começou em 1971 com ‘Play Misty for Me’, que ostenta o fabuloso título em português de 'Destinos nas Trevas'!
Quando Eastwood fez a sua obra prima de despedida ao western, ‘Unforgiven’ (1992), dedicou-a a “Sergio and Don”. Na realidade, se não fosse Sergio e Don, Eastwood bem que poderia ter passado ao lado de uma grande carreira. Em 1964 Sergio Leone foi à América encontrar um actor principal para o seu western quebra-convenções ‘A Fistful of Dollars’. Não tinha muito dinheiro para gastar, por isso queria alguém que já soubesse andar a cavalo e manejar uma pistola. Numa noite, num quarto de hotel, viu na televisão um episódio da série ‘Rawhide’, da qual um jovem Eastwood era um dos actores principais. E o resto é história. Em Itália, Eastwood filmou a trilogia dos dólares para Leone, que culminou com o seminal ‘The Good, the Bad and the Ugly’ (1966). Só depois é que finalmente se estreou no cinema de Hollywood.
Com o realizador Don Siegel fez o policial 'Coogan's Bluff' em 1968, mas até voltar a trabalhar com ele, Eastwood ainda fez dois filmes de guerra com Brian G. Hutton, os surpreendentes ‘Where Eagles Dare’ (1969) e ‘Kelly's Heroes' (1970), bem como 'Hang'em High' (1968) para Ted Post e 'Paint Your Wagon' (1969) para Joshua Logan. Mas foi com Siegel, e para o estúdio Universal, que Eastwood alcançou a sua passada, atingiu enorme fama e tornou-se ouro na bilheteira americana, com três filmes entre 1970 e 1971: ‘Two Mules for Sister Sarah’ (1970), o soberbo ‘The Beguiled’ (1971) e claro, o primeiro ‘Dirty Harry’ (1971). Quando os críticos americanos ainda mostravam enorme relutância (são famosos os ataques da influente crítica Pauline Kael a 'Dirty Harry' e a Eastwood), Eastwood estava a seguir o seu curso naturalmente, e Don Siegel era o seu principal mentor, inspirando-o a ir mais longe. E Eastwood parecia também ter ambições muito para além de ser um cowboy ou um policia duro. Em 1968 Eastwood já tinha formado a sua própria produtora, a Malpasso, que primeiro associada à Universal, e depois, até aos dias de hoje, à Warner Brothers (para onde Eastwood se mudou em meados dos anos 1970), esteve por detrás de todos, ou quase todos, os seus filmes. E pouco depois de criar a sua companhia, Eastwood já estava a sentar-se na cadeira da realização. O seu primeiro filme foi um pequeno documentário sobre as filmagens do filme 'The Beguiled'. E o seu primeiro filme na verdadeira acepção da palavra foi ‘Play Misty for Me’ em 1971. Estava a dar tanto dinheiro a ganhar à Universal como actor principal que estes não se importaram nada de lhe financiar este projecto pessoal de baixo custo, quando Eastwood o propôs. E Eastwood acabou-o antes do prazo e abaixo do orçamento, um hábito que é reputado por manter até hoje, o que mais uma vez demonstra a sua seriedade, o seu talento e o seu profissionalismo.
Seria muito fácil Eastwood começar a sua carreira de realizador com um policial. Seria mais fácil ainda começar com um western. Seria território familiar, seguro, e o público estaria habituado e mais rapidamente o aceitaria. Iria realizar muitos destes ao longo da vida, é certo, mas nunca iria voltar a realizar um filme como ‘Play Misty for Me’, e é isso que o torna ainda mais interessante. ‘Play Misty for Me’ poderia, na altura, ter sido realizado por Hitchcock, ou por Clouzot ou por Truffaut. Uns anos mais tarde, uma nova vaga de realizadores americanos, como Brian de Palma, também entraria neste universo. Mas realizando um filme assim em 1971, e ainda por cima como estreia, Eastwood provava as suas ambições artísticas, a sua coragem, e como sempre esteve à frente do seu tempo e à frente dos seus críticos.
‘Play Misty for Me’ passa-se numa pequena comunidade californiana, Carmel-by-the-sea, onde, nada por acaso, Eastwood vivia desde que se mudou para Hollywood, e ainda continua a viver (nos anos 1980 chegou até a ser o presidente a câmara desta pequena cidade!). Ou seja, Eastwood não procurou um território seguro em termos de género cinematográfico, mas aninhou-se no meio familiar e pequeno que o acolheu, e onde se sentia em casa, o que é mais um cunho pessoal que dá no filme.
Em Carmel vive Dave (Eastwood na sua forma clássica dos anos 1970, que nem vale a pena descrever), um famoso DJ de uma rádio local, cujo programa nocturno passa “um pouco de música e um pouco de poesia”. Mas primeiras cenas, temos o enquadramento desta personagem, um ladies man que vive uma vida relaxada da pequena cidade, ao som do jazz que Eastwood tanto adorava e dos paradigmas herdados da geração dos anos 1960. Aliás, todo o filme tem o tom de filme dos ‘seventies’, algo datado, e alguns planos mais artísticos; a câmara longuíssima, o lento zoom, os caminhares despreocupados pela natureza ao som de musiquinha smooth, hoje fazem sorrir e destoam num filme que até está bastante bem realizado para um estreante (que o homem tinha talento atrás de uma câmara é imediatamente perceptível, mas o filme, visualmente, é notavelmente um produto do seu tempo).
Uma noite, depois de terminar o seu programa, Dave vai ao seu bar de eleição (de notar o pequeno papel de Don Siegel como o empregado do bar). Lá engata Evelyn (uma soberba e assustadora interpretação de Jessica Walter). Evelyn apresenta-se como a fã número 1 do programa de rádio de Dave, e com o decorrer da noite ele descobre que ela é a misteriosa ouvinte que lhe liga todas as noites para o estúdio a pedir que ele toque a música Misty ("play Misty for me"). Segue-se uma noite de sexo, que Dave acha ser sem compromisso. Mas no dia seguinte, Evelyn aparece-lhe em casa. Dave acha estranho mas aproveita a situação para mais uma noite de paixão. Para Dave é apenas uma escapadela, porque aliás nesse mesmo dia descobre que a sua grande paixão, Tobin (a delicada Donna Mills), regressou à cidade. Dave admite a Tobin que não foi propriamente um monge na sua ausência, mas que descobriu que ela é o amor da vida dele e que quer uma nova oportunidade. Tobin está hesitante, mas nota-se que ela também ama Dave.
Até aqui tudo bem. Só que o filme tem uma sombra, claramente perceptível. E essa sombra é Evelyn. Mesmo nas cenas idílicas, as tais dos passeios de Dave e Tobin ao som de smooth jazz, apercebemo-nos que poderá estar alguém a observar. E à medida que o filme se desenrola, Evelyn torna-se a primeira grande e arrepiante stalker do cinema moderno. Aparece em casa de Dave. Aparece no seu trabalho. Faz uma enorme cena de ciúmes quando Dave vai almoçar com uma produtora de uma grande estação de rádio de São Francisco, que lhe poderá oferecer um emprego melhor. Evelyn começa a consumir a vida de Dave, convencida de que são um casal. E se não o tem a bem, então quer tê-lo a mal. E se não o pode ter a mal, então torna-se violenta. Extremamente violenta, com consequências trágicas para todos os envolvidos no triângulo amoroso…
‘Play Misty for Me’ pode não ser o melhor filme sobre esta temática, mas é extremamente convincente. A história desenrola-se a bom ritmo e a construção emocional é bastante credível. Algumas coisas são contudo um pouco inexplicáveis, como Dave não chamar a policia no primeiro ataque violento de Evelyn, ou porque motivo a libertam da instituição mental, supostamente porque está curada, antes do clímax do filme (óbvio que ela regressa a Carmel, ainda mais violenta, mas vá lá, se não houvesse esta desculpa o filme não tinha um desfecho tão bom). Mesmo assim, estes são pormenores menos importantes num filme que revela uma série de camadas psicológicas e emocionais bastante bem trabalhadas. A interpretação de Jessica Walter como Evelyn é um dos marcos do filme (muito mais, claro, que a de um Eastwood igual a si próprio, o que não é necessariamente mau), e é uma pena que não a vimos em muitos mais filmes. A sua Evelyn chega a ser arrepiante, a gelar a espinha do espectador com o seu olhar frio e psicótico, e algumas cenas poderiam estar sem alterações num filme de Hitchcock, o que é um grande elogio para um então estreante realizador. Destaco também a breve aparição de John Larch como o sargento da polícia, mais um inesperado toque de classe.
Confesso que não gostei de algumas cenas com o estilo de realização datado que já mencionei. Na longa conversa onde Dave e Tobin reacendem a chama, Eastwood mete-se a si próprio e a Donna Mills a percorrer as mais belas paisagens à beira mar de Carmel, em planos idílicos nos quais vão tendo conversas sérias ilustradas por cortes visuais mas não argumentais. Por exemplo, Eastwood diz uma fase à beira-mar e Mills responde-lhe na floresta. A conversa é a mesma, mas eles vão mudando magicamente de sítio. Da mesma forma, não calha muito bem a quebra enorme que o filme tem entre o seu segundo e o seu terceiro acto. Após o primeiro clímax, Evelyn é internada. Tudo parece estar bem, mas o público desconfia, pois ainda falta meia hora de filme. Antes da sua libertação, meses depois, para o verdadeiro, e intenso, final do filme (alguns anos antes dos primeiros filmes slasher, Eastwood mais uma vez provou estar à frente do seu tempo), Eastwood demonstra a passagem do tempo levando as personagens principais a um festival de jazz. Só isso. Dave e Tobin, bem como alguns amigos, vão a esse festival e comem e dançam. E durante quase dez minutos de filme, só vemos isso, sem grande consequência para o argumento, a não ser ganhar tempo para o último acto, Eastwood exibir o seu gosto musical e ter uma desculpa para partilhar o ecrã com alguns dos seus ídolos. Verdade que quando o filme mergulha no clímax, fá-lo brilhantemente, mas a quebra anterior é quase inexplicável. Mesmo que o objectivo seja atrair o público para uma falsa sensação de segurança, é uma sequência demasiado superficial para ter interesse quando comparada com o resto do filme. E o público já sabe que vem aí qualquer coisa, por isso a pausa também se torna um pouco irrelevante.
Algo datado visualmente mas não emocionalmente, ‘Play Misty for Me’ é um filme inquietante e de uma forma muito subtil é poderoso (um comentário que se pode aplicar ao próprio Eastwood). Não dá muitas justificações para o comportamento paranóico e bipolar de Evelyn, e na realidade está muito pouco preocupado em explorar a sua natureza. Está preocupado, isso sim, com as consequências desse comportamento, e como ele afecta as pessoas que ficam no seu raio de influência. O papel de Evelyn é menos um de demonstrar abertamente a sua insanidade (embora os planos com a faca façam relembrar imediatamente ‘Psycho’), mas um que a vai insinuando aos poucos, desconcertando o público, até que de repente o medo já se entranhou nele. Esta abordagem é claramente mais eficaz do que dar choques intensos mas inevitavelmente artificiais e passageiros. Assim sendo, desta forma o espectador vai-se sentindo cada vez mais incomodado com Evelyn até aos eventos assustadores e intensos do final. E depois do filme acabar o espectador ainda se sentirá tentado a dar um olhar de soslaio para a sua cara metade… só para ter a certeza!
Por ter realizado esta construção com sucesso e por ter negado um filme que podia facilmente fazer um grande alarido consigo próprio, Eastwood tem de ser congratulado, e não admira que os críticos franceses o tenham descoberto como autor vinte anos antes dos americanos. ‘Play Misty for Me’ pode ser um filme muitas vezes esquecido na carreira de Eastwood mas é um dos mais ousados, um dos mais invulgares, um dos menos previsíveis, e por tudo isto um dos mais surpreendentes. Mas ao mesmo tempo não é surpreendente que tenha sido um pouco ignorado. Está fora do género em que Eastwood na altura (e em muitos anos vindouros) estava rotulado, estava à frente do seu tempo em termos de temática (no final dos anos 1980 vimos muitos filmes parecidos), mas em contrapartida o seu estilo visual ficou logo datado. Contudo, hoje em dia, como outros filmes de Eastwood tais como ‘Everywhich Way But Loose’, ‘Play Misty for Me’ é um filme a ser redescoberto. Um drama inquietante mas não pesado, o mais próximo que Eastwood esteve de Hitchcock ou Brian de Palma (a não ser, talvez, no igualmente surpreendente ‘Tightrope’, 1984), e o trabalho de um génio a germinar. E faz um par incrível com ‘The Beguiled’, que Eastwood acabara de filmar para Don Siegel. Para quem conhece Eastwood agora mas nunca viu estes filmes antigos eu digo, citando ‘Total Recall’, “get ready for a surprise”.
0 comentários:
Enviar um comentário
Porque todos somos cinema, está na altura de dizer o que vos vai na gana (mas com jeitinho).