Realizador: David Fincher
Actores principais: Ben Affleck, Rosamund Pike, Neil Patrick Harris
Duração: 149 min
Crítica: Há três anos terminei a minha crítica ao último filme de David Fincher, ‘The Girl With the Dragon Tattoo’ (2011) com as frases:
“É ‘apenas’ um thriller, sim, mas todos adoramos um bom thriller. E este é um bom thriller”.
Na realidade devia ter acrescentado um “muito” no final – muito bom thriller. Mas o mesmo já não posso acrescentar a ‘Gone Girl’ (em português 'Em Parte Incerta'), a sua nova obra, que chega depois de atrasos e adiamentos sucessivos na concepção das sequelas de Millenium. Todos adoramos um bom thriller e ‘Gone Girl’ é um thriller interessante, que chega a prender, chega a surpreender, chega a chocar. Mas no fundo, no fundo, não se consegue transcender, não consegue mexer completamente com as emoções do espectador, nem tem energia para o consumir quando ele sai do cinema e ruma a casa, e por isso não consegue atingir, a meu ver, aquele patamar de ‘filme extraordinário’, ‘filme memorável’, ‘filme muito bom’.
Este é o primeiro candidato assumido aos Óscares a estrear nas salas portuguesas, e todos sabemos o que têm sido os candidatos aos Óscares nos últimos anos: filmes longos (este tem quase duas horas e meia, sem necessidade nenhuma), com pouca subtileza e demasiado lustro, independentemente de terem ou não qualidade. Ora ‘Gone Girl’ até tem qualidade, até tem subtileza, até tem surpresas bastante intensas, mas em vez de explorar estas suas valências intrínsecas, anda a esforçar-se para se apetrechar de outras coisas, que enchem o olho do espectador, é certo, mas desviam o interesse daquilo que realmente interessa. Um pouco à imagem do que o próprio Fincher já fez no seu ‘The Curious Case of Benjamin Button’ (2008).
Por mim há três grandes coisas que não resultam neste filme: o tom de Ben Affleck, o tom da realização e o tom que o argumento acaba por ter no terceiro acto da película.
Começando pela realização, tenho de admitir que, ao contrário da maior parte dos cinéfilos modernos, nunca fui grande fã de Fincher (já vi todos os seus filmes menos ‘Zodiac’, 2007 – nunca calhou…). ‘Seven’ (1995) é uma obra prima mas ‘Alien 3’ (1992) é péssimo. Nunca percebi muito bem qual era toda a histeria por ‘Fight Club’ (1999), um filme que engana o espectador de uma forma injusta durante dois terços, e ‘The Game’ (1997) e ‘Panic Room’ (2002) são aventuras simpáticas, extremamente bem filmadas, mas com uma profundidade limitada. E a partir daí Fincher tornou-se um ‘realizador-Óscares’, fazendo filmes artísticos mas populares, sempre divididos entre a qualidade visual e a mestria das composições (que têm, sem dúvida), e um artificialismo "das massas", que não (me) cai bem. ‘The Curious Case of Benjamin Button’ (2008) faz, literalmente, uma tempestade num copo de água, e ‘The Social Network’ (2010) é completamente comercial, completamente focado e completamente datado – daqui a 10 anos o filme, como filme, não apelará a ninguém, e quando o Facebook for esquecido como já foi o hi5 então apelará ainda menos. Já ‘The Girl with the Dragon Tattoo’ estava muito mais bem construído, mas é de salientar que o livro original também o está, o que é uma grande vantagem. Fincher criou um ambiente extraordinário e na altura defendi que, se era para ganhar um Óscar, então merecia mais aqui do que em qualquer outro filme (merecia mais que Tom Hooper, que acabou por ganhar por ‘King’s Speech’ nesse ano). Mas também escrevi na crítica:
“Contudo, tal como ‘Social Network’ este é um filme que se passa sempre no mesmo tom. Fincher filma tudo da mesma forma. Visto que é o segundo filme seguido em que faz isso, começo a desconfiar…”
E chegados a ‘Gone Girl’ pesa-me notar que, pela terceira vez seguida, Fincher filma de novo tudo no mesmo tom. Mesmo quando a história explode, quando os twists surgem, o filme mantém a sua rigidez formal inalterável, a sua composição mecânica, a sua frieza e, muitas vezes, a sua impessoalidade. É um estilo que Fincher adoptou na sua carreira? Não sei. Só sei que ontem quando sai da sala, especialmente após aquele final, fiquei com a sensação que tudo era morno, que o filme precisava de um forte abanão visual. Poderá o leitor dizer-me que isso iria contra o tom e o estilo da película, a essência das personagens, e que ao manter o distanciamento, Fincher é mais eficaz a retratar estas vidas e a história fria e calculista. Até poderia concordar, mas até os filmes de Hitchcock (cuja comparação com 'Gone Girl' já circula pelas internets), que se regiam pelos mesmos princípios, explodiam no final, se não em termos da história, pelo menos através de recursos visuais ricos, uma montagem inteligente e uma moral psicológica bem definida. Mas estes elementos não existem na forma de filmagem de Fincher, até mesmo no final do filme. Poderá apelar a outros, estou seguro, mas a mim não.
Contribuirá para isto também, suponho, o facto do argumento do filme ter sido escrito pela mesma autora do livro, Gillian Flynn, livro esse que nunca li. Se a mulher escreveu o romance assim, também quereria certamente que o filme mantivesse esse tom, e seria difícil a um realizador alterá-lo. Claro que agora vou usar o exemplo que me convém, mas ter filmado ‘Maltese Falcon’ tal como o livro de Hammett está escrito seria ter perdido a beleza, ainda hoje épica e icónica, da performance de Bogart, Lore ou Greenstreet. Às vezes, para transpor a história de um livro para o cinema, é preciso tomar uma ou outra liberdade para conseguir criar uma obra imortal…
Isto até porque a história é realmente interessante, é realmente original, e prende o espectador desde o início, pelo menos até dois terços do filme. Um dia Nick (Ben Affleck) acorda de manhã e, com um ar contemplativo (ou tanto quanto Affleck consegue fazê-lo) vai ao bar que gere com a sua irmã gémea Margo (Carrie Coon), numa cidadezinha do Missouri. É o dia do seu aniversário de casamento e as coisas não correm bem. Regressado a casa, depara-se com a sala revirada. A sua mulher Amy (Rosamund Pike) desapareceu. E a partir daí, o filme divide-se entre a investigação policial, levada a cabo pela Agente Boney (Kim Dickens), com Nick a parecer cada vez mais suspeito; as buscas para encontrar Amy, igualmente promovidos pelos interesseiros pais desta (Lisa Banes e David Clennon); e flashbacks da vida a dois de Nick e Amy, tal como contados pela própria em voz off, através leituras do seu diário, diário esse que mais tarde será encontrado pela polícia.
Inicialmente um casal jovem e apaixonado em Nova Iorque, Nick e Amy regressam à terra natal de Nick quando perdem os empregos devido à crise, e a mãe deste adoece com cancro. No Missouri vivem a vida da pequena cidade, com Amy a ser cada vez mais uma dona de casa desesperada. O que parecia ser um casal perfeito obviamente esconde os seus segredos, e com a estrutura tripartida que mencionei anteriormente, o filme vai-se construindo com inteligência e desfiando o seu novelo. Esta construção é forte, sem dúvida, e suscita muita curiosidade no espectador, para além de fazer igualmente uma pequeníssima sátira social, aos costumes da 'Middle America' e ao meio jornalístico, sedento de notícias sumarentas, sátira esta que se vai mantendo ao longo de todo o filme. Mas isso Fincher sabe fazer com uma mão atrás das costas. Contudo, é de notar que filma tudo pela superfície, ou seja, como contado por Nick à polícia ou como contado por Amy no seu diário. Portanto, ao aperceber-se disto, o espectador fica certamente à espera de surpresas, porque sabe que o filme está a mostrar fachadas e não o que as personagens estão verdadeiramente a pensar e a sentir. E se começar a reflectir sobre essas surpresas, bem que poderá adivinhá-las, o que tira um pouco de piada à coisa...
E em relação a isto o casting de Affleck ajuda pouco. De galã não tomado a sério, de repente toda a gente assumiu que ele tinha talento (um pouco à imagem de Clooney). Até pode ter a realizar, mas os seus papéis são invariavelmente todos iguais, a sua expressão é igual, a sua emotividade é igual. Num filme destes, para mim parece incrível como é que alguém pode ter medo dele, como é que alguém pode julgar que ele assassinou ou raptou a mulher. A aura de suspeição que o filme procura ter, a dualidade na personagem, o homem que pode ser inocente ou culpado, perde-se completamente, porque quem o interpreta é Affleck, o que é um grande turn off para o filme e ajuda a descortinar um segredo da história bem antes do tempo. Se esta pessoa a meio do filme vestisse um fato de Batman, voilá, já teríamos o primeiro vislumbre de como Affleck vai interpretar este super-herói para o ano, sem a mínima diferença. De novo, à imagem de Clooney em ‘Batman & Robin’.
Já Rosamund Pike, a fria (mas cool, passe-se o trocadilho) ex-bond girl que andou um bocado perdida em papéis secundários na última década, tem aqui a oportunidade de uma vida. E vai ficando mais cativante à medida que o filme se vai desenrolando, adicionando camadas à sua personagem e à sua interpretação. Se a química entre ela e Affleck no inicio é quase inexistente, é graças a ela que essa química surge, quando o filme mais precisa, para explodir na cara de ambos, e do espectador... E a dualidade que não existe em Affleck nela existe aos magotes, e torna-se a alma, o poder e o significado do filme. O Óscar, ou pelo menos a nomeação, já chama...
Quando Nick fica cada vez mais incriminado, mas proclama mais a sua inocência, o cerco aperta-se e ele contrata um advogado (Tyler Perry), para o tentar salvar e descobrir o que aconteceu a Amy. Ao mesmo tempo o filme lança também suspeitas sobre um ex-namorado de Amy, Desi, que vai acabar por ter um papel preponderante na trama, como o espectador suspeita logo, por ser interpretado por quem é - Neil Patrick Haris (super-convincente, mas cujo papel passaria despercebido não fosse ele o sr. Barney Stinson – por o ser a nomeação Óscar Actor Secundário também já chama). E é neste ponto que coisas começam a acontecer. E de que maneira. A primeira grande revelação do filme surge em força mas, a meu ver, surge cedo de mais, o que é um grande senão desta película, estragando o suspense e a tensão construída até então.
Mas é preciso defender o filme neste ponto. Por um lado é talvez melhor que a revelação surja, já que é a coisa mais previsível do filme e assim é logo tirada do caminho. Por outro, o filme revela um surpreendente segundo acto. Dá a volta por cima a esta revelação matutina para construir toda uma segunda parte vibrante, com interesse, suspense e energia, tal como Almodóvar fez em ‘La Piel que Habito’ (2011). De repente, já estamos a ver a história de um ângulo completamente diferente e estamos embrenhados em novas revelações, novos twists e cenas chocantes (uma em particular, quase a única coisa da trama que não ‘adivinhei’, adorei ver e sinceramente queria mais!). Contudo, ao mesmo tempo, apesar deste novo sopro de energia, há a mesma negação por parte de Fincher em quebrar o tom. Sempre que eleva o ritmo, baixa-o logo de seguida, para cenas mais ponderadas e reflectidas, como se tivesse medo de fazer um clímax como fez, por exemplo, em ‘Seven’ ou ‘Fight Club’. Talvez esteja apenas a brincar com as emoções do público, ou a dar tempo que ele assente as revelações a que acabou de assistir. Será? Ou talvez ache que isso torne a película mais artística, mais intelectual. Talvez tenha razão… Os irmãos Coen também já passaram por essa fase…
E mais cedo ou mais tarde, o filme vai desvendando os seus segredos, levando a um desfecho que surpreende mas que reflecte o que foi todo o filme; o mesmo tom, a mesma frieza calculista, mas ao mesmo tempo a mesma impassividade. Numa palavra, detestei o final. Não consigo perceber como um filme com uma construção tão boa, que conseguiu reinventar-se após parecer que estava a acabar cedo de mais, e que conseguiu ter duas partes, dois reversos da medalha, com uma fasquia elevada de qualidade no género 'thriller moderno', depois se digne a acabar de uma forma tão desprovida de sabor e pouco credível (algumas incongruências são convenientemente esquecidas e algumas personagens têm atitudes inexplicáveis), embora não seja, note-se, um final psicologicamente fraco. Lendo comentários acerca do livro, leitores queixam-se de exactamente a mesma coisa. Portanto esta é uma escolha que se deve inteiramente à argumentista. Ela decidiu acabar assim a sua história. É justo? Provavelmente sim, para ela, visto que é a sua história. Mas como espectador acho que ficaria mais satisfeito com um final mais enfático, mais consistente, menos incerto. Mas mesmo que não fosse, até seria aceitável acabar assim, tal como acaba, mas precisava, para isso, de um toque do realizador mais incisivo, mais focado, para gelar mais o espectador do que gela, que Fincher se recusa a dar. As despesas psicológicas do final são todas atiradas para cima do espectador, sem que o formalismo do filme seja afectado. E esta escolha estragou-me um pouco a experiência de ver este filme. Não queria que me fizessem a papa toda, como acontece nos blockbusters, mas também não se pode ir para o extremo oposto. Ou pode? Se ‘Usual Suspects’ acabasse assim, era o filme de culto que é hoje? Mas, de novo, 'No Country for Old Man' ganhou Óscar de Melhor Filme...
Para mim ‘Gone Girl’ é um thriller bem concebido e bem executado, mas apenas até certo ponto. Tem rasgos de originalidade e inventividade que o colocam acima de obras contemporâneas, tem uma construção adequada e cativante, mas contudo é previsível, e quando finalmente consegue surpreender e chocar, fica de novo tímido (ou intelectualmente ponderado) e aninha-se no seu tom monótono, perdido na sua própria inteligência (ou isso ou o burro sou eu, nas palavras de Scolari). Pike brilha como a desaparecida Amy e avizinha-se um salto na carreira, Perry dá um toque de classe e Haris revela uma dualidade assustadora que me fez lembrar Robin Williams em ‘Insomnia’ (2002). Mas Affleck, o centro do filme, tem dificuldades em o suster, pela sua própria natureza como actor. E Fincher, como o epicentro artístico e mestre de cerimónias, constrói o filme com sagacidade, um verdadeiro arquitecto que sabe levar o publico pela mão e pela montanha russa de emoções, mas não o faz tão bem como já fez, fá-lo pior que em ‘The Girl With the Dragon Tattoo’, e opta por mostrar o final da mesma forma fria, ponderada e calculista que caracteriza o verdadeiro vilão da trama, quando finalmente é revelado. Mas esta escolha, coerente e até justificável pela natureza dessa personagem, na realidade não se adequa ao filme como um todo. Fiquei parvo, mas não fiquei chocado, nem o final me deu a volta às entranhas, nem ficou a atormentar-me o cérebro no caminho para casa. Queria mais. Mas se calhar eu é que sou muito exigente.
No final não posso dizer que gostei muito de ‘Gone Girl’, porque como um todo não me satisfez. Não foi uma experiência completa. Faltava qualquer coisa. Mas já vi muitos thrillers fracos nos últimos anos, com surpresas pobres e revelações a tentarem ser inteligentes sem conseguir. E comparado com esses filmes, ‘Gone Girl’ está num nível muito acima. É inteligente. É cativante. A história prende. Mas depois tem falhas de actuação, de realização e de argumento que não apreciei. Contudo, se estiver candidato aos Óscares não será um escândalo. Muito pelo contrário. Tem o apelo do filme comercial e a intelectualidade levemente artificial, o formalismo técnico, de apelo aos críticos. E mete ‘King’s Speech’, ‘Slumdog Millionaire’, ’12 Years a Slave’ e até ‘Argo’ num bolso. Valha-nos isso. Mas quanto mais cedo Fincher voltar às sequelas de Millennium, melhor. E se não voltar a trabalhar com Ben Affleck, também.
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