Realizador: Jean-Pierre Dardenne, Luc Dardenne
Actores principais: Jérémie Renier, Déborah François, Jérémie Segard
Duração: 95 min
Crítica: O filme francês ‘L’enfant’ (em português ‘A Criança’) é uma das provas vivas de uma coisa que eu me queixo constantemente nas minhas críticas. Nomeadamente, o facto de muitos filmes obterem reconhecimento, reputação, fama, rendimento na bilheteira e prémios nas mais prestigiadas cerimónias, não pela sua qualidade cinematográfica intrínseca (a fluidez do seu argumento, a beleza da filmagem, a mestria dos actores, o encadeamento da montagem), mas pura e simplesmente pela suposta ‘importância social’ que ostentam, ou seja, pelo facto de serem sobre um assunto crítico ou socialmente relevante. Como disse na minha crítica a ‘Extremely Loud and Incredible Close’: “Um filme sobre uma mulher em cadeira de rodas, homossexual, drogada, com o vírus da SIDA, que fez um aborto e cujos pais morreram tragicamente ganhará dezenas de prémios internacionais, porque tem este tema, e não por qualquer qualidade que o filme, como obra cinematográfica, como técnica e arte, possa ter. E isso tira-me do sério […] Não é o tema do filme, ou a história da personagem, ou o contexto social que faz o filme. É um pouco de tudo isto, claro, mas muito mais. É o filme que faz o filme.”
Quando vejo um filme vejo-o como uma tábua rasa. Não é por ele ser sobre toxicodependentes que é imediatamente bom. Já vi filmes sobre drogados bons, e filmes sobre drogados maus. Já vi um filme sobre idosos a viverem numa aldeia isolada em Espanha (‘El cielo gira’, já criticado neste blog) que era insuportável de tão mau e tão seca. E já vi filmes extraordinários que não tinham um único homossexual, travesti, toxicodependente, órfão, refugiado, deficiente motor, pobre ou marginal. Incrível, não?! É possível? Certamente, o cinema é uma arte universal e as pérolas podem surgir em todo o lado, quer o filme seja socialmente relevante, ou não. Mas como também escrevi na crítica a ’12 Years a Slave’: “é daqueles filmes que simplesmente é crime criticar, é crime não galardoar.” Sorri quando ouvi Ellen dizer na última cerimónia dos Óscares: “Só duas coisas podem acontecer hoje, ou ‘12 Anos Escravo’ ganha o Óscar de Melhor Filme, ou somos todos racistas”. Foi uma piada, é certo. Mas não estava assim tão longe da realidade. É precisamente isso que acontece com filmes deste género. É chantagem emocional. É descriminação positiva, tão má, a meu ver, como qualquer outra forma de descriminação.
Neste contexto, e após ter visto ‘L’Enfant’, senti que as mesmas forças operaram aqui. ‘L’Enfant’ é um bom filme, disso não haja dúvidas, mas não é assim tão bom. E definitivamente não é assim tão bom, no meu humilde ponto de vista, ao ponto de ser digno de ganhar a prestigiada Palma D’Ouro no festival de Cannes, o que foi precisamente o que aconteceu em 2005. E o feito foi ainda maior, porque a sua dupla de realizadores/argumentistas, os irmãos franceses Jean-Pierre Dardenne and Luc Darlene estavam a ganhar este galardão pela segunda vez (um feito raríssimo, apenas conseguido por nomes como Kusturica ou Haneke), após o terem conseguido em 1999 por ´Rosetta’. Ou seja, nem sequer foi uma questão de dar um prémio há muito adiado, mesmo que o filme pelo qual se recebe o prémio não seja tão bom como os anteriores (como aconteceu, por exemplo, a Scorsese nos Óscares). O júri (nesse ano liderado precisamente por Emir Kusturica) decidiu-se, pura e simplesmente, por uns meninos queridos bem conhecidos da casa. Porque foi só com este título, ‘vencedor da Palma D’Ouro’, que ‘L’Enfant’ conseguiu percorrer e encher as salas europeias e, em muito menor escala, as do Mundo. Quem falou deste filme antes? Quem falou deste filme depois? Quem se recorda dele? A forma como chegou às minhas mãos é mais que elucidativa. O DVD saiu a 1 euro com um jornal e a capa e a contracapa repetem vezes sem conta o grande prémio que ganhou. Um filme pode ganhar um prémio por ser bom. Mas nunca será bom, pelo menos no meu livro, só porque ganhou um prémio.
Quando comecei a ver o filme, nem sequer sabia qual a sua história, nunca tinha visto um filme destes irmãos franceses (e continuo sem ter visto outro) e não conhecia nenhum actor. Sabia somente que tinha ganho a Palma D’Ouro, e era isso. Podia ser artístico, podia ser incompreensível, podia ser blockbuster, podia ter um tema social relevante, podia ser qualquer coisa, mas tinha que ser no mínimo, achava eu, algo de especial. Tinha? Pois...
O filme começa mostrando-nos planos de uma jovem, Sónia (interpretada por Deborah François) que, com um bebé recém-nascido nos braços, percorre a cidade, vários locais seus conhecidos, à procura do seu namorado e pai da criança, Bruno (interpretado por Jérémie Renier). Ela está desempregada. Ele é um ladrãozeco de pequenos furtos, que ganha o seu pão de uma forma dúbia, mas não muito perigosa. Muitos dos seus esquemas quase patéticos para ganhar mais umas moedas são mostrados durante todo o filme. É uma atitude semi cómica, semi decadente, semi patética, semi revoltada, semi egocêntrica, semi despreocupada, semi preguiçosa, mas o que quer que seja peca por ser sempre mostrada para puxar ao sentimentalismo. Juntos, Bruno e Sónia vivem uma existência frugal e magra, desinteressante e rotineira. Contudo, o filme mostra-nos, nesta parte inicial, uma série de cenas que têm o intuito de provar ao público que o casal está realmente apaixonado, que há uma forte ligação entre eles, e que conseguem viver desse sentimento, eclipsado os seus problemas e o mundo exterior. Mas estas cenas de despreocupação alegre e apaixonada podem também significar que a sua relação apenas sobrevive porque são jovens, e que se alimentam da folia da juventude, de um amor superficial de descoberta, e não de um amor duradoiro. Portanto, logo à cabeça, e vendo o seu estado, não consigo muito bem acreditar que o seu amor é daqueles que possa ultrapassar tudo e todos. São apenas dois falhados atirados para os braços um do outro, porque não conhecem algo melhor e então agarram-se a esse superficial afecto. De parte de Sónia ainda posso acreditar que exista algo mais, que queira algo mais. Da parte de Bruno não, e não há nada no filme, até ao seu final, que me prove o contrário.
Para começar há o elemento principal da trama. Logo no dia seguinte, Bruno, como se nada fosse, pega no bebé, no seu próprio filho, e vende-o a uma rede de mafiosos (que depois vende os bebés por quantias bem superiores a casais que não conseguem adoptar). Não mostra o mínimo de remorso, a mínima hesitação. No seu dia-a-dia procura sempre dinheiro fácil, e aqui está mais uma oportunidade, de esforço mínimo. Mais tarde, quando Sónia descobre, desmaia e tem que ser levada para o hospital. Irada e revoltada, denuncia o seu próprio namorado à polícia.
E aqui dá-se a primeira fase, ainda muito ténue, da suposta redenção de Bruno. Perante estes acontecimentos, ele inicia uma demanda para tentar obter o bebé de volta. Mas há aqui um pormenor muito importante, que o filme se esquece de salientar. Bruno fá-lo não por remorso, não por amor a Sónia, mas por medo de ser apanhado pela polícia! Ele não é um herói trágico. É um tipo mesquinho e egoísta, que de repente se acobardou perante a ameaça de ir preso. Os mafiosos acabam por lhe devolver a criança, mas para compensar o dinheiro que não vão fazer com a venda do bebé, começam a extorquir Bruno, e a ficar-lhe com todo o dinheiro que ele consegue arrecadar dos seus esquemas. Para além do mais, apesar de ter conseguido devolver a criança à mãe, esta não está minimamente interessada em continuar a andar com ele, depois do que ele fez. Portanto, de um dia para o outro, e em consequência da sua atitude egoísta, Bruno vê-se sem namorada, sem casa (Sónia não o deixa entrar), perseguido pela polícia e sem possibilidade de ganhar dinheiro, pois há sempre um capanga mafioso em cada esquina pronto para lhe extorquir o seu último centavo. De repente, a existência de Bruno desaba, a sua vida despreocupada e livre desaparece, e não há ninguém em quem se possa apoiar.
E então, começamos a assistir a mais cenas que retratam Bruno como o patético herói trágico que na realidade não é. O filme não se acanha em mostrar cenas em que ele é espancado, e bem espancado, por mafiosos. Suponho para que tenhamos pena dele, e para que a crueldade das ruas ajude a perdoar a atitude que teve. O filme mostra as suas atitudes suplicantes a pedir o perdão de Sónia, que ela se recusa a dar. A sensação de que o está a fazer por favor, egoisticamente, para conseguir salvar a pele, não me deixa, nem que fica chateado e não triste, quando Sónia não o perdoa. Aos poucos, é verdade que fica tão mal que começamos a ter pena dele. Mas essa pena nunca veio da personagem. Foi sempre forçada pelo filme.
E neste ponto, apesar de tudo, a solução de Bruno é recorrer a mais e maiores roubos, ainda por cima usando um miúdo mais novo, um mero adolescente, como cúmplice. Incrível, já que estamos apenas no dia seguinte aos principais eventos da trama. Mas o roubo corre mal e, na fuga, o miúdo quase morre. É ao ver o miúdo nesse estado, que a viragem emocional de Bruno fica completa. É o clique para o pôr no caminho da salvação. Rende-se à polícia e inicia a sua redenção…
Vamos lá ver. Por um lado, o filme está feito de uma forma delicada e quase poética, que advém da simplicidade e realidade das suas cenas, bem estruturadas e bem filmadas. Por vezes, é um pouco chato e tem cenas que se arrastam demasiado, mas a vida normal é assim, portanto em prol da ‘realidade’ do filme isto é perfeitamente perdoável. Ainda mais porque há um bom trabalho de realização e os dois actores principais (particularmente Déborah François como Sónia) são convincentes. Mas as personagens que estes actores interpretam não o são tanto assim e há coisas que falham na estrutura emocional de todo o filme.
No final, numa cena supostamente emotiva, de puxar à lágrima, passada na prisão, quando Sónia vai visitar Bruno, ambos olham um para o outro, não pronunciam qualquer palavra, e depois a câmara pousa-se em Bruno, oferecendo-nos, continuamente e sem cortes, a imagem deste ser patético a chorar desalmadamente durante dois ou três minutos. Fim. Uau. Estou comovido… Não. Na realidade não estou. A redenção de Bruno, se se pensar bem, adveio única e exclusivamente do facto de ele não ter dinheiro nem sitio para ir. Tudo quanto sabemos, ele preferiu ir para a prisão porque ai não precisaria de se preocupar com dinheiro e teria um tecto e três refeições por dia. Se há uma coisa que não foi a causa da sua redenção foi o amor! Meia hora antes, Bruno vendeu, VENDEU, o seu próprio filho por meia dúzia de tostões, e não lhe custou absolutamente nada fazê-lo. Mas agora que um miúdo com quem ele cometeu um roubo cai ao lago e quase se afoga, os realizadores esperam que o público acredite que Bruno encontrou aí a força para emendar a sua vida?! Não foi Sónia, não foi o bebé?! A gota de água foi um pequeno marginal, que nem sequer morreu no acidente?! Se os mafiosos tivessem sido mais benevolentes e lhe tivessem devolvido a criança ao preço a que Bruno a havia vendido, então ele não estaria entalado sem dinheiro, não receberia constantes enxertos de porrada, e então provavelmente teria encontrado outro local para viver, teria encontrado outra Sónia, e teria continuado a ganhar a vida da mesma maneira, a fazer o que sempre fez…
Bem, talvez não precisamos de ser tão cépticos. Talvez possamos dar um desconto ao filme e tentar acreditar que ele se redimiu por amor a Sónia e à criança. Mas então onde está a cena que nos prova isso? A sequência dos eventos, e correndo o risco de me repetir é: ele vende a criança e dois dias depois (dois dias!), porque perdeu a namorada, o dinheiro, está sempre a levar coças e um roubo corre mal, decide entregar-se e ir para a prisão! Isto é desistir. Não é redimir-se. Dois dias?! Não é tempo suficiente. Quando decidiu entregar-se foi porque cedeu ao peso dos eventos, não porque de repente viu a luz. E quando chora na prisão, a suposta sequência reveladora, isso para mim é mais uma prova da sua personalidade mesquinha e cobarde, que se quebrou com o peso da vida, que não lhe correu como ele queria, convencido que estava com os seus golpes patéticos e a sua existência despreocupada.
De qualquer forma, ‘L’Enfant’ é, apesar de tudo, um filme que consegue ser poderoso sem ter uma única cena poderosa (algo que é bastante difícil de fazer), e por isso merece crédito. Infelizmente, é um daqueles filmes que para mim perde todo o interesse, já que se torna num filme em que a história de base (a que esta escrita nas sinopses, a que é promovida) se torna bem mais importante que as cenas que tentam efectivamente contar essa história. A cena final de choro (peço desculpa contá-la, mas é essencial para comentar a alma do filme) é completamente vendida, para puxar à lágrima. Não há absolutamente nada no filme ou na personagem que a consiga substanciar, ou pelo menos no sentido que é suposto. Para mim, como disse no parágrafo acima, soa a um marginalzinho a descobrir que não é o tipo mais espectacular do Mundo, não a um homem pronto a mudar e assumir o papel de pai. Mas para o filme Bruno é um grande herói trágico e é este conceito que permanece e que o fez ganhar prémios. Veja-se como o filme, após se ter focado no bebé no seu primeiro terço, se volta repentinamente para Bruno sem mais o largar até ao final. O bebé, inclusive, não volta a surgir no filme. Há a teoria de alguns críticos que a criança do título não é o bebé, mas Bruno. Consigo acreditar nisso perfeitamente, mas então só corrobora a minha teoria que estamos a ver um filme, nada especial, sobre um falhado. O facto de o filme tentar culpar isso na estrutura da sociedade é que o fez ganhar prémios. Mas será isso correcto? A culpa, na realidade, não poderá ser da estúpida inocência convencida e despreocupada de Bruno?
Posto isto tudo, é fácil de perceber que Cannes votou no conceito, não no filme, como agora se costuma fazer na maior parte das cerimónias de prémios. Em ‘L’Enfant’ o conceito consumiu tanto o filme que eclipsou qualquer valor de técnica cinematográfica que poderia ter. O arco emocional de Bruno é conveniente para a mensagem do filme, mas não é credível. O que é uma pena, visto que o filme começou de uma forma bastante credível. Tal como o recente ‘Dallas Buyers Club’, o filme começa bem e de uma forma interessante, pungente e delicado, mas depois opta por um percurso completamente vendido, comercial, para enaltecer a sua mensagem social e sacrificando para isso as suas personagens, os seus sentimentos, a sua alma. Com isso, infelizmente ninguém parece importar-se. E após os prémios ganhos (ou ganham ou somos todos racistas) estes ‘artistas’ ainda parecem importar-se menos. A personagem é esquecida, a mensagem fica. É este trade off justo? Depende do filme, creio. No caso de ‘L’Enfant’, para mim, perdem-se os dois. O enfoque no drama social destrói a credibilidade do filme, e por o filme deixar de ter interesse, deixa-se também de prestar atenção à mensagem.
Mas o produto final não deixa de ter a sua lógica. Bruno é um ladrãozeco menor. Portanto a sua redenção cinematográfica é também menor. Faz sentido. Dai este ser um filme interessante em certos círculos da vertente ‘cinema verité e social’, e uma boa entrada para os ciclos de ‘casos de vida’. Mas não é, de todo, um filme com força suficiente para ganhar prémios, quanto mais Cannes!
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