Realizador: Kenneth Branagh
Actores principais: Chris Pine, Kevin Costner, Keira Knightley
Duração: 105 min
Crítica: Há coisas em Hollywood que absolutamente não se entendem. Parece difícil de acreditar que uma indústria que já trilha caminho há 110 anos, que joga com quantidades massivas de dinheiro, e que tem o poder de chegar a milhares de pessoas em todos os cantos do Mundo, pareça sofrer, de vez em quando, de demência colectiva, e produza obras que são uma completa aberração, sem qualquer qualidade artística ou técnica. Obras que em vez de cumprirem a sua missão (fazer algum dinheiro e entreter) e passarem despercebidas, dando lugar à seguinte, chamam, em vez disso, a atenção para si e se auto-destroem, numa espiral viciosa de lugares comuns, para agradar a gregos e a troianos, para supostamente “darem ao público o que o público quer”. Mas a última coisa que o público quer (acho eu) é ver um filme mau e ‘Jack Ryan: Shadow Recruit‘, blockbuster do início do ano, é um filme mau. É essa demência colectiva levada ao extremo, um filme de acção foleiro em que o herói sabe tudo, faz tudo, mesmo que isso não faça sentido, e que trás à memória o cinema acéfalo, explosivo e despreocupado dos anos 1990, em que alguém queria arrebentar com os States e um Bruce Willis, um Stallone, um Seagal ou um Wesley Snipers salvava o dia. Se o filme datasse dos anos 1990, se o elenco fosse encabeçado por Snipes e se tivesse Gary Busey (quem sabe quem é Busey percebe-me), e se fosse realizado por Renny Harlin eu perdoaria a ofensa. Agora em 2014 e realizado por Kenneth Branagh? Por favor…
E a coisa que menos se entende é a concepção do filme. Este é o quinto filme feito com a personagem de Jack Ryan, inventada pelo fabuloso escritor de acção/espionagem Tom Clancy. Clancy faleceu em 2013, pelo que a consequência óbvia foi que a Paramount, que havia feito os quatro filmes anteriores, pôs em produção mais um. Mas o que eu não entendo é porque é que não se basearam num livro de Clancy. Em vida, Clancy escreveu dezenas de livros quer com a personagem de Ryan, quer com a de John Clark (um agente que cruza caminhos com Ryan várias vezes – leia o livro Without Remorse, caro leitor, é brutal), quer, mais tarde, com Jack Ryan Jr., o filho de Ryan. E nos últimos anos da sua vida, Clancy foi co-autor de outros livros de Ryan escritos maioritariamente por outros escritores. Mas nenhum destes livros é inspiração para ‘Jack Ryan: Shadow Recruit‘. Este é um argumento original, inicialmente chamado ‘Dubai’, escrito por um tal de Adam Cozad (o seu primeiro argumento), e que iria ser feito com Eric Bana no papel principal, até que foi comprado pela Paramount e readaptado para a personagem de Ryan (uma táctica clássica nas franchises de acção quando perdem o gás, de 'Die Hard 4' a 'Ocean’s 12'). Porquê?! Há uns 20 livros de Ryan. Nenhum deles servia? É por serem demasiado bons? É por serem demasiado complicados para o público moderno? É por terem uma história e personagens com profundidade? É porque dava muito trabalho adaptar qualquer um deles e os senhores tinham mais que fazer? Mal li ‘inspirado nas personagens de Tom Clancy’ e não ‘baseado nos livros de Tom Clancy’ na ficha técnica fiquei logo de pé atrás. E o filme só confirmou o meu receio. Clancy ficou reputado pelo rigor técnico dos seus argumentos. Já este argumento foi escrito numa casa de banho; uns russos maus, uma bomba, uma falcatrua não muito bem especificada no mercado da bolsa, um herói que adivinha o plano do vilão sem pistas nenhumas e antes mesmo do próprio vilão saber que tem um plano. O meu filho de cinco anos (que não tenho) escrevia isto, e escrevia melhor.
Ainda por cima, esta readaptação ficou a cargo de David Koepp, que está muito melhor quando escreve argumentos baseados em livros ('Jurrasic Park', 'Carlitos’s Way', 'War of the Worlds'), do que quando escreve argumentos originais ('Mission: Impossible', 'Snake Eyes', 'Indiana Jones and the Kingdom of the Crystal Skull'), que geralmente não resultam em grandes filmes. Para quê contratar um especialista na adaptação de livros, se depois não se adapta um? E para completar o quadro, o realizador escolhido foi Kenneth Branagh. O génio do cinema shakespeariano (já critiquei aqui o seu ‘Hamlet’ e o seu ‘Much Ado About Nothing’), faz claramente estes blockbusters para se divertir e para ganhar dinheiro. Veja-se o seu péssimo ‘Thor’ (2011). E veja-se este exemplo. Mas como vilão russo, a performance de Branagh está brutal (mesmo sendo a sua personagem mais um lugar comum) e talvez seja isso tudo o que lhe interesse. Das duas uma, ou Branagh perdeu o seu toque dourado, ou está pouco preocupado com o teor artístico destes blockbusters, desde que financiem os seus projectos pessoais e o deixem divertir-se com a sua personagem. Sendo este o seu segundo filme seguido em Hollywood de qualidade duvidosa, começo a desconfiar….
Jack Ryan estreou-se em ‘The Hunt for the Red October’ (1990), baseado no primeiro livro de Clancy, com Alec Baldwin no papel principal. O filme é um pináculo da acção dos anos 1980; fantástico, brutal, viciante. Harrison Ford pegou no papel nos anos 1990, com ‘Patriot Games’ (1992), mais íntimo mas não menos interessante, e ‘Clear and Present Danger’ (1994), um autêntico épico do género (e que conta com a participação do português Joaquim de Almeida). Se estes marcos de acção dos anos 1990 definiam os filmes de Ryan com um elevado padrão de qualidade, a verdade é que quanto mais alto se sobe, maior é a queda. Pode-se dizer que ‘The Sum of All Fears’ (2002) está para os primeiros três filmes de Ryan como Ben Affleck está para Harrison Ford ou Alec Baldwin (embora ajudou bastante ser baseado num livro de Clancy e ter Morgan Freeman). E, da mesma forma, pode-se dizer que ‘Jack Ryan: Shadow Recruit‘ está para a saga de Ryan como Chris Pine (quem? exacto!) está para os restantes actores que já interpretaram o analista do governo americano.
Para mim a maior estupidez foi terem destruído a humanidade que Ryan tinha. Sim, neste filme vemos o seu relacionamento com Keira Knightley, sua namorada, que não sabe, no início, que ele é um agente, e na segunda cena vemo-lo a ser ferido no Afeganistão, mas nenhum destes artifícios resulta muito bem. Pois ao invés de ser um analista, um prodígio de gabinete que descobre coisas pela investigação, mas que por via das circunstâncias tem que ser enviado para o terreno, onde está pouco à vontade mas vai improvisando e aprendendo pelo caminho, o Ryan de Pine é uma autêntica máquina de guerra. É descrito como um super-analista, um tipo que sabe coisas que os restantes nem adivinham que existem, e que quando olha para um computador cheio de números os seus olhos começam a piscar como acontece na nova série de Sherlock (só faltava ver coisas imaginárias no ar enquanto raciocina…). Mas Ryan é também um Bourne ou um Bond. Há um ou outro plano para nos mostrar as suas supostas fragilidades, como por exemplo ter as mãos a tremer depois de matar um homem, mas a verdade é que o matou, e sem grande dificuldade. Como foi soldado sabe lutar, sabe disparar uma arma, sabe atirar-se para cima de um camião em movimento e atingir o motorista, matando-o, ou pelo menos descarrilando a viatura. Enfim. No terreno, consegue fazer tudo e mais alguma coisa E no fim continua com o seu sorrisinho de miúdo. O John MacLaine está velho. O Dirty Harry está enterrado e o Rambo deve ter reencarnado como um caracol. Este novo Ryan é o pacote completo, sem falhas; um tipo com um doutoramento, uma máquina de guerra, um adivinho e um menino jeitoso. Espectáculo! Bem, nem por isso.
O início tenta fazer a Ryan o que se fez a Bond. Ele é um jovem, na faculdade, e vemo-lo a assistir aos ataques do 11 de Setembro na TV. Corta para a cena seguinte, num helicóptero no Afeganistão. É o maior, entregou três relatórios super-espectaculares sobre movimentações de guerra inimigos, e salva os seus dois companheiros quando o helicóptero é atingido. Isto com as costas partidas. Aparentemente, este Ryan é também o Man of Steel! Estas duas cenas não servem para nada. Passado menos de 5 minutos de filme, Ryan já está no Hospital a re-aprender a andar, onde conhece Knightley (a enfermeira) e onde um agente da CIA o recruta (Kevin Costner……………pois…….). O que vimos até aqui foi character development? Ou foi uma exibição banal de como Ryan é o maior, para que o público acredite no que se seguirá? Boa pergunta.
Aliás, Costner bem que podia ser um tarado. Aparece, diz que é da CIA e recruta Ryan, dizendo-lhe para acabar o doutoramento, arranjar um emprego em Wall Street e ‘estar atento’. Só isto. Uau. Foi complexo. E não foi preciso provar nada. A palavra de Costner chega. E depois da legenda ’10 anos depois’, o que situa a acção precisamente em 2014 (curiosamente, ou não, nenhuma das personagens envelheceu) não é que Ryan um dia chega ao emprego e tem uma de Sherlock, quando se mete a olhar para um ecrã cheio de números e valores da bolsa. Num segundo contacta a CIA. Por incrível que possa parecer, de ler esses números, Ryan deduz todo o plano de um vilão russo que nunca viu na vida nem sabe que existe. Alguém, diz ele com convicção, está a comprar milhares de dólares em títulos de tesouro americano, para dentro em breve os vender a todos de uma vez, em simultâneo com um ataque terrorista. Isto terá como resultado o dólar perder por completo todo o seu valor na bolsa mundial. A primeira parte eu até entendo que Ryan descubra. Olha para um computador e vê milhares de títulos de tesouro a serem comprados por uma empresa russa às escondidas através de outras companhias. Ryan é um bom analista. Consegue perceber o padrão. Porreiro. Agora saltar daqui para o resto do plano é que é absolutamente incrível, e não faço ideia como o fez. Especialmente a parte do ataque terrorista simultâneo. Mas não é que o sacana tem razão?! Concomitantemente já andamos a ver o russo Kenneth Branagh (a única interpretação que presta no filme), precisamente a desencadear essas acções. Mas é curioso notar que Branagh nunca conta, uma única vez, o seu plano. A única vez no filme em que o ouvimos descrito é nas deduções de Ryan…
E então lá vai Ryan para a Rússia mascarado de analista, ter uma reunião com Branagh para sondar o terreno e tentar sacar mais informação. Na Rússia, as coisas começam a dar para o torto, e o filme transforma-se num clássico de acção, onde o herói faz tudo, desde perseguições, a assaltar o escritório super-vigiado do vilão para chegar ao seu computador e, no final, até salvar a sua própria namorada, que por esta altura já está convenientemente em Moscovo, e que obviamente é raptada pelos maus.
Em relação a este último ponto três coisas a dizer. Primeiro a rapidez com que Knightley chega a Moscovo. Ryan fala com ela ao telefone, quando é noite na Rússia e ela está na América. Na manhã seguinte Ryan levanta-se, tem a sua reunião na sede da empresa de Branagh, e no final da breve reunião já é informado que Knightley chegou ao hotel. Passaram-se no máximo dos máximos 10 horas. Digam-me o nome da companhia que ela utilizou, por favor! Depois, Knightley está no quarto de hotel à espera dele. Visto que foi uma surpresa, e eles não são casados, como é que os tipos do hotel a deixaram entrar no quarto? E por fim, até pode ser interessante, embora batido, Knightley achar há já algum tempo que o marido tem um caso, por às vezes ter atitudes misteriosas e mentir em relação a onde esteve. Mas isso é na América. Agora voar até Moscovo, de propósito, pelo mesmo motivo? Se Ryan estava a ter um caso na América porque precisaria de ir até Moscovo? Uma escapadela ilícita?! Era mais fácil ir a Queens. E qual era o plano de Knightley? Surpreendê-los? Se calhar foi por isso que voou tão depressa. Mal Ryan lhe diz no quarto do hotel "sou da CIA", Knightley tem uma reacção patética. Só suspira e diz "oh que bom, pensei que estavas a ter um caso". E prontos… CIA? Onde, quando, como? Não importa. Ele não viajou até à Rússia por ter um caso com outra mulher... Sem dúvida, esta foi uma grande desculpa para pôr a personagem de Knightley em Moscovo. Mas há pior. A partir deste momento Knightley quase se torna uma agente. Veja-se a forma extraordinária como ela distrai Branagh para Ryan lhe assaltar o gabinete; sem medo, sem hesitações, e cheia de recursos. Uma agente treinada não faria melhor. Mas, espera, ela não era um simples enfermeira…?! Lá está, eu esqueço-me que neste filme são todos uns heróis espectaculares.
E depois das coisas resolvidas na Rússia, o filme ainda se desloca para Manhattan, onde Ryan evita uma espécie de 11 de Setembro, parte 2. De novo, os criminosos provam ser uns tansos. Anos e anos de preparação, ludibriam todas as agências internacionais, mas quando Ryan se aproxima, ficam nervosos, sabe-se lá porquê, e cometem erros infantis. E aí Ryan faz mais uma dedução improvável e opta por mais uma solução estúpida (veja-se a forma como a bomba poderosa, que supostamente iria destruir metade de NY, explode como uma mísera bomba de Carnaval mal Ryan a atira ao rio… nem uma ondazinha, nem uma mini-tsunami cria…).
‘Jack Ryan: Shadow Recruit‘ é uma mancha nos filmes de Ryan, e é uma mancha na carreira de Branagh como realizador. O seu ‘Thor’ pode ser perdoável por estar no reino da BD, mas este filme está no reino do ‘fazer dinheiro com pouco esforço’. Se este tipo de filmes existem no imaginário da acção, onde o público baixa naturalmente a sua fasquia de realidade (algo que não importa se for atraente, se nos fizer mergulhar nesse universo), já este filme tem tanta coisa incredível que salta à vista que foi feito sem grande esforço intelectual. Ryan resolve, Ryan deduz, Ryan salva o dia, e os outros não lhe chegam aos calcanhares, desde a polícia, aos outros agentes da CIA, ao próprio Costner, que na sequência de acção final acaba por ser um mero espectador, que faz vénias a Ryan enquanto este dá mais uma de John MacLaine. Se isto já de si é extremamente enervante, o pior é Chris Pine não ser nada convincente como um herói de acção. Não se mexe com pujança, não transpira carisma, não consegue ser duro. E nem sequer consegue mandar umas boquinhas humorísticas.
Kevin Costner actua quase por favor, Keira Knightley está inexplicavelmente má (veja-se como contrai todos os músculos da cara na cena à saída do hospital… pensei que era da personagem, mas não… o que se passou ali?!), e Branagh está a fazer sotaque russo e claramente a divertir-se bastante a fazer de vilão. Mas não estamos a ver este filme para ver Branagh a divertir-se. Recorda-se leitor quando Branagh não conseguia parar de sorrir em ‘Wild Wild West’ (1999), o primeiro blockbuster em que entrou?! É quase a mesma coisa. Não se ri, mas o seu ar sério é tão intenso que só não é artificial porque ele é um bom actor. Mas tudo o resto fica ridículo em comparação.
Estamos a falar de um filme que tem uma cena em que o vilão, sozinho numa igreja, pronuncia frases como ‘odeio a América, vou-me vingar’. Estamos a falar de um filme em que os capangas dos maus matam pessoas a torto e a direito, muitas vezes sem justificação, só porque são maus (mas sem sangue, este é um blockbuster familiar!). Estamos a falar de um filme em que as personagens existem num micro cosmos incrivelmente limitado, mas vivem convencidas que as suas acções afectam o mundo inteiro e por isso são super-épicas. Mas as cenas de acção e perseguição, sinceramente, nem são assim tão espectaculares quanto isso, para salvar o filme.
Creio que a pontuação de 6.2 no imdb é elucidativa. Todos os blockbusters actuais, bons e maus, têm de 7.5 para cima, portanto se este filme nem é do agrado do público que gosta deste tipo de filmes, quanto mais de pessoas que procuram algo mais do cinema. E nem me parece que a geração moderna fique seduzida por este espectáculo. Têm o Bond de Daniel Craig, têm os filmes de Bourne, e há falta de melhor podem ir à internet ou à loja mais próxima arranjar filmes de há 20 anos iguais, mas bem melhores. Eu já não via um filme com esta composição fílmica e argumental desde os anos 1990, mas o retorno não foi muito bem vindo. E se o encanto de filmes como 'Die Hard 5' ou os 'Mercenários' ainda reside nos seus actores, cuja memória de filmes passados nos ajudam a ultrapassar o trauma dos degredo que estamos a assistir, em ‘Jack Ryan: Shadow Recruit‘ não há nada que nos permita fazer essa ponte nostálgica. Não será Kevin Costner de certeza. Portanto, o que sobra? Um filme de acção foleiro, simples e mastigadinho, que deu o que tinha a dar 15 anos antes de ser feito. Se é esse tipo de entretenimento que procura, leitor, esteja à vontade. Eu prefiro chegar a casa e ver o ‘Caça ao Outubro Vermelho’.
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