Realizador: James Bobin
Actores principais: Ricky Gervais, Ty Burrell, Tina Fey
Duração: 107 min
Crítica: Como a maior parte das crianças que deu os seus primeiros passos nos gloriosos anos 1980, desde tenra idade que me tornei fã dos Marretas, os deliciosos fantoches criados por Jim Henson. O original ‘The Muppet Show’, a série ‘Muppets Tonight’ ou o animado ‘Muppet Babies’ entravam pela televisão de minha casa e eu ficava vidrado, como ficava, por exemplo, com a Rua Sésamo. Mas a minha devoção incondicional pelos Marretas ficou selada de outra forma. Teria uns 12 ou 13 anos quando os meus avós me ofereceram o VHS do extraordinário filme ‘Muppet Treasure Island’ (1996). Durante a minha adolescência, vi este filme dezenas de vezes, e hoje ainda o revejo de quando em quando. É uma obra-prima do cinema infantil, mas também do cinema de comédia em geral. Acho-o tão bom (e é-o mesmo, não duvide leitor), que o inclui no meu top já publicado dos melhores filmes dos anos 1990 (publicado neste link).
E foi depois de gastar vezes sem conta a fita deste VHS que aos 15 ou 16 anos comecei a procurar e a ver os restantes filmes dos Marretas, que diga-se tiveram várias fases. O primeiro, ‘The Muppet Movie’ (1979), foi um enorme sucesso de bilheteira, e tinha o espírito simples da série; comédia singela, números de música e dança belos, artísticos e animados, participações especiais de personalidades contemporâneas, e uma moral referente à amizade, à família e ao facto de cada um poder ser como é sem ser descriminado. Mas tudo isto estava envolto numa aura mais matreira e mais sarcástica – o segredo que torna os Marretas uma delícia também para os adultos. Quem pode esquecer, em relação a este primeiro filme, o cameo de Steve Martin, ou as músicas de Paul Williams? Seguiram-se ‘The Great Muppet Caper’ (1981) e ‘The Muppets Take Manhattan’ (1984) no mesmo estilo, como se um episódio da seminal série ‘The Muppet Show’ fosse estendido até ao tamanho de um filme. Depois Henson faleceu, mas o seu filho, Brian Henson, prosseguiu com o legado de uma forma muito inteligente: deu uma sólida história de base ao material que os anteriores filmes não haviam tido. ‘The Muppet Christmas Carol’ (1992) e ‘Muppet Treasure Island’ (1996) são mais do que aventuras animadas dos anos 1990. A base literária dá aos filmes outra dimensão e os Marretas invadem estes universos de histórias que todos conhecemos com originalidade e mestria. Embora estes filmes não tenham o espirito original dos Marretas na sua conceção, têm-no no cerne, e são para mim os dois melhores filmes em que estas criaturas entram. Depois, com a mudança dos valores e da forma de fazer entretenimento para crianças que se deu com o aproximar do milénio, os Marretas, na minha opinião, perderam-se. ‘Muppets from Space’ (1999) e ‘The Muppet’s Wizard of Oz’ (2005), este último directo para a TV, são filmes mais ‘vendidos’, que tentam desesperadamente ser engraçados às custas de valores comerciais e da nova geração, e a sua irreverência intrínseca parece fora do lugar. O insucesso destes filmes pareceu ditar o afastamento dos Marretas para sempre da sétima arte.
Contudo, estamos numa era de fracas ideias e de muita reciclagem cinematográfica. Quando se anunciou ‘The Muppets’ (2011) fiquei contente. Quando me apercebi que o realizador era James Bobin, que até então tinha trabalhado com Sasha Baron Coen na série e no filme de Ali G, bem como na série que por acaso acompanhei ‘Flight of the Conchords’ (engraçada mas não assim tanto) e quando me apercebi que o argumento era co-escrito por Jason Segel, da série ‘How I Met Your Mother’, que também iria ser o actor principal, hesitei. E quando vi que, apesar de alguns marionetistas como Steve Whitmore ou Dave Goelz se manterem a bordo, outros como o glorioso Frank Oz (o Yoda, a Miss Piggy!!!) e até o próprio Henson não estariam envolvidos, aí tomei a decisão de não ver o filme no cinema. Vi-o mais tarde e fiquei desapontado. O centro da história era um Marreta novo, Walter, sem traços distinguíveis e com uma personalidade morna, e para além disso os Marretas giravam à volta dos humanos e dos cameos e não vice versa, como deveria ser. ‘The Muppets’ não é um bom filme, mas pela primeira vez em 15 anos, um filme dos Marretas fez dinheiro. Muito dinheiro. A sequela era inevitável.
Este fim-de-semana não havia nada que me interessasse ver no cinema, por isso decidi ir ver a sequela, ‘Muppets Most Wanted’, que já estreou nas salas portuguesas há cerca de um mês. Não estava à espera de muito. Muitos cameos como o de Lady Gaga, Danny Trejo ou Tina Fey já haviam sido anunciados e o filme parecia seguir a mesma linha do anterior. Mas o filme começou e eu comecei a dar gritinhos de prazer (internamente!). A primeira sequência, um número musical, reflete tudo aquilo que os Marretas são, toda a sua essência. A autoconsciência, o piscar de olhos ao público, as piadas inteligentes sobre o Mundo do espectáculo, a dança, a musica, tudo faz lembrar, e bem, ‘Muppet Show’, mas com o cunho de originalidade que é devido a um produto novo.
Contudo, esta minha recém-encontrada alegria durou pouco. Estes primeiros 5 minutos acabam por ser o melhor que o filme tem para oferecer, e cedo reverte para o timbre de ‘The Muppets’. Ou seja, de vez em quando os Marretas brilham e atingem a genialidade de outrora, mas a maior parte do tempo o filme está a capitalizar nas estrelas modernas que vão desfilando, num humor demasiado infantil, quiçá baixo (mesmo para os Marretas) e numa história previsível e desprovida de grande interesse. Mas o que me preocupou mais durante todo o filme, e continua a preocupa-me agora, é a moral que está subjacente, que vai contra tudo aquilo que são os Marretas, e não é nada bom, na minha opinião, para transmitir às crianças. Como isto passou ao lado de todos os envolvidos no filme passa-me a mim ao lado.
A história do filme é tão simples quanto isto. Após o seu recém-encontrado sucesso no filme anterior, os Marretas estão de novo na berra no Mundo do espectáculo. Cocas quer reconstruir a sua reputação devagar, mas a maior parte dos membros da companhia está mais impaciente. Desta feita entra em cena Dominic Badguy (lê-se badgí, é francês!), interpretado com até algum carisma interessante por Ricky Gervais. Este convence-os a ir numa tournée mundial, um pouco contra a vontade de Cocas. Na realidade Badguy trabalha para o criminoso Constantine, que acabou de fugir de um gulag na Sibéria. Constantine é igualzinho a Cocas, com a diferença de um sinal na cara. Como ninguém neste universo nunca reparou nisto é um mistério para mim. Simplesmente, Constantine cola um sinal na cara de Cocas e pinta o seu próprio de verde. Voilá. Troca feita. Cocas é mandado para a Sibéria e Constantine toma o lugar de Cocas na trupe. Sim, eu sei que isto é um filme para crianças, a historia é suposta ser simples, mas o que me incomoda é o seguinte. Constantine fala com um sotaque russo, a sua personalidade é a oposta da de Cocas, mas porque é igual a ele de cara, toda a gente o aceita na companhia?! Todos se convencem que ele é o Cocas muito embora ele não tenha uma única atitude de Cocas só porque os deixa fazer o que lhes apetece nos espetáculos?! Porque ele lhes faz as vontade todas para os manter ‘alegres’ eles não olham para ele duas vezes e perdoam constantemente o seu mau humor, o facto de ele não saber os seus nomes, e o seu desinteresse pelo espectáculo e pelos Marretas?! Então, se percebi bem, o que o filme nos está a dizer é que apenas os valores superficiais contam. Só a fachada conta. Se Constantine é igual ao Cocas fisicamente embora não o seja na alma, então toda a gente o aceita como Cocas sem questionar. Isto é, no mínimo, incrível.
Ok, Animal desde logo sabe que ele não é o Cocas (“sapo mau!!”), mas é o único, e para além disso fica impávido e sereno durante meio filme até mais alguém suspeitar (neste caso Walter). Durante esse tempo Animal parece esquecer-se que sabe que aquele não é o verdadeiro Cocas. Entretanto Badguy e Constantine roubam vários museus na Europa que estão ao lado dos teatros onde os Marretas actuam, e vão colocando pistas para incriminar estes. Enquanto disso, Cocas está na Sibéria, a transmitir valores aos prisioneiros que incluem Ray Liotta, Jemaine Clement ou Danny Trejo, e a ligar-se à inicialmente rija (mas sempre engraçada) guarda prisional interpretada por Tina Fey (a melhor actriz humana do filme), enquanto espera que os amigos o venham salvar. Há ainda um terceiro grupo, formado pelo marreta Sam the Eagle (um velho favorito) e por Ty Burrell (da série Moderno Family) como dois agentes policiais, um americano e outro francês, que estão a tentar resolver o mistério dos museus roubados. As suas cenas em conjunto são das mais engraçadas, embora brilhem mais quando o humor é subtil (veja-se a cena em que cada um bebe o seu tipo de café) do que quando abertamente tentam gozar com os estereótipos americanos e continentais. Como disse, este filme tem rasgos de genialidade, e nestas cenas mais do que nas restantes, mas é uma pena que sejam apenas rasgos.
Eventualmente, Animal, Walter e Foozie vão à Sibéria salvar Cocas e depois há a luta contra o tempo para desmascarar Constantine e Badguy antes que Constantine case com Miss Piggy na Torre de Londres, local onde planeia roubar as joias da coroa durante a cerimónia. E só quando chegamos a esta altura é que os Marretas se lembram que o superficial não é tudo e que há outros valores importantes, o que leva ao desmascarar da trama, à redenção final e ao eventual salvar do dia…
‘Muppets Most Wanted’ tem uma série de pontos a seu favor. É um passo acima do filme de 2011, vai fazendo várias homenagens à serie e aos filmes originais (aliás toda a história dos roubos e o cenário europeu fazem lembrar ‘The Great Muppet Caper’), os cameos são engraçados, e a historia é suficientemente ligeira, animada e musicalizada para ir entretendo a miudagem e fazer sorrir de quando em quando alguns adultos. Contudo é apenas um passo acima. As homenagens aos ‘velhos marretas’ são feitas da perspectiva actual, que não é nostálgica mas sim quase histórica, porque obviamente o filme não tem no seu cerne a força motriz ou a dedicação original de quem criou estas criaturas de raiz. A aparição breve de Rizzo the Rat, o meu marreta favorito, que nem aparece no filme de 2011, retrata isto na perfeição. Na única frase que diz queixa-se que a focagem nos novos Marretas (neste caso Walter) é feita em detrimento dos Marretas da velha guarda. Este pedaço de auto consciência fez-me sorrir bastante, quase como se fosse uma achega dos velhos rezingões (que por acaso até têm grande destaque). Da mesma forma, quando Jim Henson faleceu, as suas personagens favoritas, e que ele manejava pessoalmente, Ralph e Scooter, tornaram-se, por respeito, ausentes dos filmes, porque nenhum outro marionetista se sentia bem ao interpretá-las. No filme de 2011, ambos regressem como se nada fosse. Agora já não há essa preocupação emocional. O que não é necessariamente mau, pois os marionetista originais não vão, obviamente, viver para sempre, mas os Marretas poderão fazê-lo se os valores forem passando de geração em geração. Contudo, infelizmente, o objectivo geral parece ter mudado. Agora é exclusivamente entreter e fazer rir. Outrora já foi mais humano, mais artístico e mais educacional.
Por outro lado, a atenção dada aos cameos e às personagens humanas é surpreendentemente exagerada. Os Marretas praticamente só tem direito à primeira canção inicial. Depois disso, o foco é todo nos humanos. Gervais canta uma canção, Tina Fey outra (ambos sozinhos), Burrell outra (felizmente em dupla com Sam the Eagle) e os prisioneiros do gulag (onde estranhamente quase não há Marretas) outra. Até Céline Dion e Josh Groban fazem o gosto às suas magníficas vozes. É só pensar, mais uma vez, nas músicas mágicas de Paul Williams no filme original de 1979 ou na forma como os Marretas acompanham todos os números musicais de ‘Muppet Treasure Island’ para sentir imenso a sua falta nas canções deste filme. Mas ‘Man or Muppet’, relembre-se, ganhou Óscar de Melhor Música em 2011. A tentativa de replicar a fórmula é mais que óbvia. E isto é o exemplo para a forma como os Marretas são, ao longo de todo este filme, secundários e outsiders ao mundo dos humanos, em vez de serem uma parte natural e principal dele.
Para além da moral dúbia outra coisa que me preocupa bastante são as lições de geografia, que parece que foram escritas pelo clássico americano ignorante. A título de exemplo veja-se o espectáculo que os Marretas dão em Madrid. As alusões a Espanha resumem-se à língua espanhola e à corrida de touros que o sempre inspirado Great Gonzo tenta fazer em palco. Todo o restante espectáculo possui elementos, não espanhóis, mas da América Latina, o que é muito grave! Veja-se a actriz convidada desse espectáculo: a mexicana Salma Hayek! E por fim também tenho de acusar o título do filme, ‘Muppets Most Wanted’. Durante toda a produção o filme chamou-se ‘Muppets… Again’. Não só foi a mudança de última hora desinspirada (o ano passado houve um filme para crianças passado na Europa chamado ‘Madagascar: Europe’s Most Wanted’!!) como há uma música no filme que diz abertamente que o público está a ver uma coisa chamada ‘Muppets… Again’! Em todas estas coisas, houve aqui enormes distrações, ou enormes faltas de profissionalismo.
Tudo somado ‘Muppets Most Wanted’ poderá ser o melhor filme dos Marretas que se pode fazer nesta era pós-moderna, mas não será um bom filme para aqueles que tiveram os Marretas na sua infância e para os que ainda os têm no seu coração. As crianças gostarão destas personagens? É capaz, porque o filme é ritmado, tem energia, nunca abranda, é colorido e tem muita música. Mas também não podemos assumir que lá por terem o primeiro iPad aos 2 anos de idade as crianças já não irão ser seduzidas pela simplicidade bela e artística de uma comédia com marionetas. Por isso há substituições ao nível basilar que são geradas por um preconceito moderno sobre aquilo que pode ou não ser engolido pelas crianças de hoje em dia que, sinceramente, para mim não resultam. Mas eu já não sou criança… E aprenderão as crianças de hoje alguma coisa a ver este filme? Isso é que estou seguro que já não. Quanto muito vão aprender que se pode ir em meio dia da Londres até à Sibéria (a pé e de comboio?!), ou que a Espanha é na América do Sul. E isto não é bem bem aquilo que se deve almejar.
Quando no final as personagens cantam ‘Together again… again’ (uma homenagem ao final de ‘Muppets Take Manhattan’) há alguns motivos para sorrir. O facto de a Disney ter comprado os Marretas foi bom, porque assim permitiu que eles regressassem quando estavam quase enterrados. Podemo-nos rir com quem nos faz sempre rir (Animal, Great Gonzo), podemos mergulhar neste universo que tantas memorias nos trás, e é uma saudável e bem-vinda mudança ao tipo de filmes para um público mais jovem que hoje em dia invade as salas de cinema. Mas foi mau no sentido em que os Marretas perderam a sua identidade individual, a sua paixão de descoberta e criação, e quase se tornaram num produto corporativo. Quando o filme se auto-pergunta: “quem é mais importante, um Marreta ou um actor humano famoso numa participação especial?”, a resposta é: o actor humano. E isso é que, a meu ver, lhe cai muito mal. Mas se ‘Muppets Most Wanted’ é bem melhor que ‘The Muppets’, então pode ser que o próximo filme seja ainda melhor. E isso seria óptimo.
Como nota final, de dizer que o filme vem acompanhado de uma curta da Pixar. Visto que a Disney detêm esta gente toda pode agora misturar o seu espólio como lhe apetece. E visto também que afinal este ano a Pixar não vai lançar nenhum filme (‘The Good Dinosaur’ foi adiado para o próximo ano), tinha que lançar a sua clássica curta-metragem anual noutro lado qualquer. A escolha é estranha, porque o universo de Monsters Inc. não é propriamente muito equiparável ao dos Marretas, mas neste caso não há azar. A curta, com as personagens da fraternidade de Monsters University (critica aqui), é um produto levemente divertido, de novo com belíssima animação, mas que está dependente do filme de base, que esteve nos cinemas no ano passado. As curtas originais (como por exemplo ‘La Luna’ ou ‘Night and Day’) estão a ser substituídas por curtas dos universos dos grandes sucessos da Pixar: Cars, Toy Story, Monsters Inc, o que só prova a recente falta de inspiração do estúdio que já fui mencionando nestas páginas. Mas nesta curta temos a oportunidade de ver Mike e Sully de novo, o que, apesar de tudo, é sempre bom. É como reencontrar um velho amigo. O que pensando bem, é o que acontece logo em seguida, quando começa o filme e os Marretas o invadem. Mas deviam ter sido mais assertivos na sua invasão. Vá, foi uma invasãozinha tímida. Mas já é melhor do que nada.
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