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Der blaue Engel

Ano: 1930

Realizador: Josef von Sternberg

Actores principais: Emil Jannings, Marlene Dietrich, Kurt Gerron

Duração: 107 min

Crítica: A história do cinema está pontilhada de obras que se tornaram, por uma razão ou outra, icónicas, que estão presentes em todos os livros, que são referenciadas sempre em associação a um determinado realizador ou a um determinado actor, mas que quando são revistas, décadas depois, acabam por não fazer completamente jus à sua reputação. Isto deve-se a motivos muito simples. A lenda suplanta o facto, o impacto que esse filme teve ao sair nunca foi esquecido mas tornou-se datado, e muitas vezes acabou por ser suplantado em qualidade por obras posteriores dos mesmos autores, que o público de hoje obviamente conhece, mas que ainda eram futuro desconhecido aquando desse filme primordial. Mas o imaginário cinematográfico recorda sempre, como em muitas coisas da vida, a primeira vez. E, igualmente como em muitas coisas da vida, não é mau regressar à primeira vez, embora às vezes não seja tão satisfatório como já foi.


Para mim, ‘Der blaue Engel’ (1930), em português ‘O Anjo Azul’, filme que revisitei este domingo, é uma dessas obras. Foi neste filme que Marlene Dietrich explodiu para o Mundo e, apesar de haveram tantas grandes obras-primas em que entrou nas três décadas seguintes (Destry Rides Again, A Foreign Affair, Witness for the Prosecution, Touch of Evil), este é ainda o filme que mais imediatamente surge associado a esta Senhora (com S maiúsculo) que foi a maior estrela cinematográfica que a Alemanha alguma vez brotou. O que é algo curioso pois neste filme Dietrich tem um papel, importante sim, mas que não é salientado (o foco está noutro lugar), e na realidade ela não demonstra nem o magnetismo nem o charme nem o à-vontade mordaz que iria semear por Hollywood, pelas suas maiores estrelas masculinas (Cary Grant, John Wayne, James Stewart…) e pelo Mundo inteiro. Não me interprete mal, leitor, Dietrich está convincente no seu papel, e percebe-se bem porque ficou na retina do público, mas o seu papel não é nada profundo (é um plano de fundo para a personagem masculina principal), e as suas cenas de cabaré em que dança e canta, que para sempre a marcariam, são muito pobres quando comparadas com a de outros filmes subsequentes. Aqui a lenda nasceu, o que a permitiu ir para Hollywood nesse mesmo ano e não mais voltar à Alemanha. O filme é lendário no sentido histórico. Não o é propriamente no sentido cinematográfico.

Isto porque o filme pertence inteiramente, ou quase inteiramente, a Emil Jannings. Houve uma altura em que Jannings era considerado o maior actor de cinema vivo. Oscilando entre Hollywood e a Alemanha, Jannings foi o grande vencedor do primeiro Óscar de Melhor Actor de todos, na cerimónia inaugural em 1928, pela sua interpretação em ‘The Last Command' (1928) e em ‘The Way of All Flesh’ (a primeira cerimonia foi a única em que se deu prémios por vários filmes). Quando a UFA, os seminais estúdios alemães que foram responsáveis pelos filmes de Murnau ou de Lang na década de 1920 (como ‘Metropolis’) começaram a trabalhar no seu primeiro filme sonoro no final de 1929 (o que seria também o primeiro grande filme sonoro alemão), com toda a pompa e circunstância, nada mais natural que ir contratar o então considerado melhor actor do mundo, que só por acaso também era alemão. E foi Jannings que quis levar consigo o seu realizador de ‘The Last Command’, Josef von Sternberg, um austríaco mas que já há muito trabalhava em Hollywood e acabara de fazer este filme com Jannings bem como, por exemplo, ‘The Docks of New York’ (1928). Com ‘Der blaue Engel’, Sternberg foi ‘redescoberto’ por Hollywood, e nos 5 anos seguintes fez 5 filmes, todos eles com Marlene Dietrich (eram também amantes), o que leva muitos a crerem que este filme foi o primeiro sucesso de ambos, o que não é verdade no caso do realizador, embora tenha sido para ele também o demarcar de um estilo, do qual dificilmente se conseguiu livrar ao longo da sua carreira (apesar de bem ter tentado). Estabelecido o argumento (que foi bem alterado do romance original para capitalizar na personagem de Jannings) coube a Sternberg e ao produtor Erich Pommer escolher uma jovem atriz para o papel de tentadora. E foi uma virtual desconhecida que ficou com o papel…

‘Der blaue Engel’ é uma historia simples e linear, com contornos de sátira social que nunca são muito bem capitalizados (aparentemente no livro são mais), sobre um respeitado professor solteiro (e supõe-se sexualmente pouco experiente ou completamente inexperiente) de meia-idade (Jannings) cuja vida é literalmente destruída pelo seu amor (ou paixão, ou desejo) a uma mulher de má reputação social (mas de grande reputação em certos meios…): a dançarina de cabaré Lola Lola (Dietrich), a primeira de muitas Lolas do cinema (a de Opholus em ‘Lola Montes’, 1955, a de Demy em ‘Lola’, 1961…). 

O filme abre estabelecendo-nos a personagem de Jannings. Assistimos à sua rotina diária, em que se levanta com os sinos, se arranja e vai para o liceu onde chega sempre pontualmente. Percebemos que não é muito bem-amado pelos alunos e mantém um regime rígido, seguindo as regras estritas da conveniência e das convenções da burguesa classe média. Tal como no liceu é assim o resto da sua vida, que não tem alma, nem sabor. Esta breve cena, a sua permanência na escola nessa manhã, dura quase um quarto de hora, tempo a mais para um filme destes. Mas o seu ritmo arrastado é justificável. Estrutura-se, ainda, como um filme mudo, uma ‘falha’, se é que se pode chamar falha, dos filmes realizados no primeiro par de anos do sonoro (que relembre-se foi inventado em 1929). O visual, escrutinando cada movimento, é ainda considerado fulcral; o filme não tem qualquer banda sonora instrumental (só musica ambiente ou incidental é utilizada), o que deixa muitos silêncios (ou melhor aquela estática que quem se lembra dos VHS sabe bem o que é), e algumas interpretações são ainda muito teatrais. Felizmente, o filme vai melhorando com o passar das cenas. Chega a parecer que tem receio de chocar o público nas primeiras cenas, e por isso dá-lhe algum tempo para se habituar ao som, aos diálogos, e às novas convenções formais cinematográficas que esses elementos implicam.

Os alunos estão particularmente distraídos e o professor descobre uma série de postais de Lola Lola. Mais tarde descobre que eles vão todas as noites ao cabaré onde ela actua. Nessa noite o professor decide ir ele próprio lá, com o intuito de salvar os alunos desencaminhados. Através de uma serie de peripécias acaba no camarim de Lola. Na noite seguinte, quase pelos mesmos motivos, acaba no mesmo sítio. E pouco mais precisa para ser fisgado. Nessa noite, ‘salva’ Lola de um marinheiro mais atrevido, e para recuperar da excitação bebe um pouco, algo a que não está habituado. Na manhã seguinte descobre que passou lá a noite e dormiu na cama de (com?!) Lola. O seu destino está selado. Acha que está apaixonado, decide casar com ela, e quando começam os mexericos, é obviamente expulso do liceu.

Há duas grandes coisas no filme que eu não entendo, ou pelo menos que o filme não justifica completamente. A primeira é porque Lola Lola decide casar com o professor. Podia achar que ele era rico, mas nesse caso o objectivo seria abandonar a vida do cabaré e não ficar nela. O filme parece querer insinuar que foi um misto de capricho e de compaixão (nunca ninguém a tinha defendido nem tratado como um senhora como o professor), mas não há nenhuma ponderação emocional nesse sentido. A segunda é a perspectiva inversa. O professor casa com Lola e em vez de a querer tirar daquela vida aceita, placidamente, segui-la de cidade em cidade, de cabaré em cabaré, aguardando nos bastidores, até ao seu dinheiro acabar. Ambas as atitudes das personagens principais são um pouco incompreensíveis.

E depois o filme faz a sua pior decisão. É de supor que nesta altura, recém-casados, em que o professor a segue para todo o lado e ainda há dinheiro, tenham tido uma existência semi-feliz, mesmo que Lola Lola tenha andado com outros homens. Pelo menos o professor terá tido breves vislumbres de liberdade e felicidade. Mas o filme nega toda essa fina réstia de esperança ao público. Há um corte abrupto e abismal. Numa cena vemo-los recém-casados no camarim, e o professor a dizer a Lola que ela nunca mais vai ter que se rebaixar ao ponto de vender os seus postais. Ela diz que é melhor guardá-los, pois nunca se sabe. E na cena imediatamente a seguir, um professor desgrenhado, de barba por fazer, meio bêbado e a fumar, está num cabaré totalmente manhoso, ele próprio a vender os postais após uma actuação de Lola. Esta é uma escolha abrupta que esquece o período intermédio e pretende focar-se apenas na desgraça do professor, que é o verdadeiro objectivo do filme, e à volta do qual toda a sua estética e significado são construídos. E neste sentido Jannings não desaponta. Pobre, rebaixado, forçado a vender postais e a fazer de palhaço em palco, gozado por todos na companhia de teatro, na assistência e pela própria mulher, que abertamente anda com outros homens, o professor de Jannings é uma figura trágica em sofrimento. Esta performance bem que podia estar num filme mudo e Jannings faz o que sabia fazer melhor, provando o seu talento e o fascínio que exerceu sobre as audiências dos anos 1920.

Mas se por um lado a queda de Jannings no abismo está maravilhosamente retratada e interpretada, com cada inflexão do seu rosto captada pela câmara, cada nuance de emoção transmitida para o público, cada sombra enfatizando mais o seu declínio, já Dietrich passa um pouco ao lado destas coisas. Permanece, altiva e distante, nos braços de outro homem, sem que as suas verdadeiras razões sejam reveladas. É uma má mulher e prontos. Nenhuma associação é feita àquele breve período de eventual felicidade em que decidiu casar com o professor, nem é a sua descida de novo para o tédio e para a sua antiga natureza trabalhada de alguma maneira. Trata-o com desprezo quando é preciso para realçar a queda do professor, e nada mais, pois só as atitudes dela que se reflectem no professor são mostradas. Mas ao mesmo tempo, Dietrich consegue transmitir um pouco da sua perspectiva através das canções que canta. Se o filme não lhe dá oportunidades emocionais, dá-lhe ao menos letras bem escritas em que o estilo Dietrich de canto - um falar quase arrastado levemente melódico, com as mãos nas ancas - despoletou e é, por breves momentos, suficientemente forte para cativar. Talvez o seja mais por sabermos o que ela atingiu posteriormente e menos pelo que efectivamente mostra neste filme. Mas não há fumo sem fogo, e Dietrich tem alguma, justificada, chama.

E quando a companhia regressa à cidade natal do professor, e todos os seus antigos colegas e alunos estão na assistência para assistir ao seu degredo, e Lola está no camarim enrolada com outro homem, é aí que o professor bate no fundo, levando o filme a um final trágico, embora previsível, de moral clara…

‘Der blaue Engel’ é um filme directo, de linha argumental unidirecional mas com uma enorme profundidade emocional, pelo menos se considerarmos a personagem de Jannings. O filme está pontilhado de inúmeros ilustres actores secundários do cinema alemão mudo e do pré segunda grande guerra, que oferecem um ou outro escape cómico mas que principalmente fortificam o enquadramento da história (destaque para o ilusionista dono da companhia interpretado por Kurt Gerron). O design de produção é também de primeira classe. Os exteriores mostram uma cidade enviesada (metáfora para corrupta?) que está em sintonia com as grandes obras alemãs da década anterior, 'Das Cabinet des Dr. Caligari' (1920) e a série de Mabuse de Fritz Lang (embora obviamente não tão estilizada). Os interiores são escuros, fumarentos, e fortificam a atmosfera de degredo que se vive nos cabarés. É um filme que seduz, mas nunca completamente, e tem uma história que começa a cativar mais à medida que o filme avança e se aproxima do final, mas que depois faz algumas escolhas menos conseguidas. Existem varias versões deste filme (existe até uma versão filmada em inglês pelos mesmos actores – prática corrente neste ano em que não se sabia como as pessoas iriam reagir ao som e às legendas) pelo que não sei se algum grande corte que tenha  notado tenha sido consequência de ter visto uma versão truncada. O imdb diz que o filme tem 120 min, mas a versão do TCM tem 107 min. Eu tenho uma versão em VHS em alemão com legendas que saiu com o jornal O Publico algures nos anos 1990 (imaginem!), que tem cerca de 100 minutos… 

Mas independentemente da versão que se consiga ver, ‘Der blaue Engel’ é uma história trágica interessante sobre a tentação e o declínio moral, com excelentes interpretações e filmada com técnica e qualidade mas pouca ousadia. Peca por nunca se desviar da sua simples linha de base, por ter uma construção algo pausada, por não explicar algumas decisões, por ser emocionalmente ingénuo, ainda muito agarrado, como é natural, à construção cinematográfica do cinema mudo, e por não dar interesse emocional a mais nenhuma personagem excepto a principal. Mas se isto se deveu ao egocentrismo de Jannings, a História foi a última a rir. O filme foi um sucesso e gerou faísca. As poucas cenas de Dietrich marcaram-na como uma femme fatale e as sua presença no palco de um cabaré tatuou-se no cérebro do público. Quando a carreira de Jennnings se perdeu no sonoro, Dietrich foi para a América com Sternberg, e juntos fizeram até 1935, 'Morocco' (1930), , 'Dishonored' (1931), 'Shanghai Express' (1932, talvez o melhor destes filmes), 'Blond Venus' (1932, uma soberba performance dramática num filme que não faz jus a isso), 'Scarlett Express' (1934) e 'The Devil is a Woman' (1935). Depois de se afastar pessoal e profissionalmente de Dietrich, Sternberg também se perderia (faria por exemplo 'Macau' em 1952 já criticado nestas páginas), enquanto que por essa altura Dietrich já era imortal! Em ‘Der blaue Engel’ uma lenda perece, Jannings, e outra nasce, Dietrich. Não é o filme melhor nem o mais perfeito. Mas foi um filme suficiente. Suficiente para ainda ser interessante mesmo após 80 anos, e suficiente para dar ao público Dietrich. O que seria o cinema sem ela? Se não fosse ‘Der blaue Engel’ nunca a conheceríamos. Só por isso este filme já merece estar em todos os livros.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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