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Hereafter

Ano: 2010

Realizador: Clint Eastwood

Actores principais: Matt Damon, Cécile De France, Bryce Dallas Howard

Duração: 129 min

Crítica: O realizador e visionário francês Jean-Luc Godard possuía a fantástica qualidade de produzir cativantes obras primas que eram quase impossíveis de  compreender na sua totalidade. Se, ao ver os seus filmes, por momentos não se percebe o que se está a passar na tela, mantém-se, mesmo assim, os olhos colados no ecrã, com uma atenção fascinada e redobrada. Ora bem, com 'Hereafter', Clint Eastwood, um grande mestre na sua terceira idade (e que curiosamente foi primeiro 'descoberto' como autor pelos franceses), produziu um filme absolutamente cativante mas em que na realidade, passe-se o termo, 'não se passa nada'.

Se se vasculhar mais profundamente neste filme encontra-se uma sensível história, profundamente humana, e gerida com um toque de delicadeza que só um grande artista possui. As três personagens principais que o filme contém são desenvolvidas de uma forma mais que perfeita, mas este desenvolvimento não só parece arrastar-se infinitamente, como parece ser a única coisa que o filme possui. Inicialmente o espectador poderá eventualmente pensar que o  desenvolvimento das personagens irá terminar mais cedo ou mais tarde e que a verdadeira história do filme começará em breve, até que se atinge o ponto em que se apercebe de que esse desenvolvimento é  precisamente a história do filme. É um sentimento estranho este, e trás de volta memórias dos filmes do passado, de uma espécie de neo-realismo, em que são as cenas do dia a dia que constituem a acção do filme, e a profundidade e a emoção são dadas através do vulgar, onde raramente alguma coisa acontece e, quando acontece, é tratada apenas como mais um pedaço de vida, que eventualmente acabará por deixar de ser novidade. Então a vida prossegue, seguindo o seu rumo.

Tendo em conta o leque de filmes que Eastwood tem apresentado na última década, é de acreditar que basicamente o outrora cowboy de poucas palavras pode basicamente fazer o filme que lhe apetece, e fazê-lo bem. 'Gran Torino' (2008) é uma obra-prima. 'Inviuctus' (2009) tem menor valor, mas continua num patamar elevado de qualidade. 'Hereafter', o projecto seguinte de Clint em 2010 (antes de 'J. Edgar' em 2011, o seu último filme até agora como realizador), é mais difícil de discernir. Ao contrário da forma como foi publicitado, este não é um filme sobre a Morte, nem sobre videntes, nem sobre o comunicar com os mortos. É sobre três pessoas, e sobre aquilo que as suas vidas se tornam após terem tido, cada uma delas, a sua experiência particular com a morte. Então vemos as suas vidas, cena após cena após cena, despidas de julgamento e sem serem carregadas de falsa emoção. Vemos Matt Damon no papel de um homem que possui o dom de falar com os mortos, e que outrora  usou esse dom para fazer fortuna como vidente. Agora trabalha na construção civil porque não consegue lidar com a pressão e a emoção dos contínuos 'contactos', o que o leva a constantemente rejeitar os apelos do irmão para voltar a esse modo de vida. Vemos uma delicada Cécile De France, uma jornalista francesa que teve uma experiência de quase-morte aquando da tragédia do Tsunami, e que agora tenta escrever um livro sobre 'o outro lado'. Por fim vemos o pequeno George (ou Frankie) McLaren, um rapaz londrino com uma mãe toxicodependente, cujo irmão gémeo morreu atropelado, e que portanto procura desesperadamente  um vidente que consiga comunicar com o irmão do qual era tão dependente.

Cada um destes cenários é apresentado à vez, com uma lentidão e uma sumptuosidade (não formal, mas emocional) que é praticamente humanamente impossível de suportar. Se o ritmo do filme fosse um nada mais lento então estagnaria por completo. Mas isto não significa que o filme seja, em linguagem corrente, 'uma seca'. Não o é. Como está, o filme está à justa  o suficiente para ser extremamente cativante, o que constitui um perplexante paradoxo. Um filme inteiro podia ser (e já foi!) feito com cada um destes segmentos. Eastwood limita-se (com a câmara como um mero observador) a unir os três lentamente, à medida que as três personagens convergem para o mesmo local, onde o filme terminará, com o mesmo tom (em termos de linguagem cinemática) que sempre existiu desde o início. Mas há algo que é fascinante nesta atracção invisível a triplicar, e que reside no interesse que a história suscita. Mesmo assim uma pessoa pergunta-se qual a necessidade de tanto pormenor, de tanta construção, se tal não tem uma projecção sobre o arco emocional das personagens, aquando do final do filme.

Algumas sequências parecem deslocadas (qual o objectivo da personagem interpretada por Bryce Dallas, tão trabalhada para ser abandonada de repente para não mais aparecer? porquê a quebra de tom, muito Hollywoodesca, na estilizada sequência final?), mas o filme não se deixa corromper por estas, e a sua força está na maneira como agarra e aborda a realidade do dia-a-dia. A morte é apenas um catalisador para a vida, a vida destas personagens. Se alguma vez se escrever uma novelização deste argumento, dará certamente um livro brilhante. Contudo, como filme, é difícil de digerir e de perceber o porquê de mostrar todos os pequenos pormenores, se a historia, filmicamente falando, não está a evoluir. É um filme que tem o sabor dos filmes em mosaico, como o 'Babel' (2006), mas com muito menos clichés cinematográficos e muita mais profundidade, que não precisa de ser filmada para ser sentida. No fim berrava por um 'Hereafter 2', porque quando se sente que se está a chegar a algum lado, quando finalmente estamos ligados às personagens porque elas foram tão brilhantemente e emocionalmente construídas, o filme acaba. O lado positivo é que sei tudo sobre estas personagens. Sinto-as, compreendo-as, e elas tocaram-me. O lado negativo é que me sentei durante duas horas a vê-las, às personagens, e não a um filme. É difícil portanto para mim, ainda hoje, de definir a qualidade deste filme, já que é um dos raros exemplos na história do cinema em que esta dualidade acontece (ou sequer existe). O filme promete mas não cumpre. Apenas oferece uma vaga esperança.

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Miguel. Portuense. Nasceu quando era novo e isso só lhe fez bem aos ossos. Agora, com 31 anos, ainda está para as curvas. O primeiro filme que viu no cinema foi A Pequena Sereia, quando tinha 5 anos, o que explica muita coisa. Desde aí, olhou sempre para trás e a história do cinema tornou-se a sua história. Pode ser que um dia consiga fazer disto vida, mas até lá, está aqui para se divertir, e partilhar com o insuspeito leitor aquilo que sente e é, quando vê Cinema.

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